:: ‘Memórias de um Dinossauro’
A Mulher Caridosa
Os dois amigos chegaram à pensão modesta na cidade do interior paulista no domingo à noite.
Radialistas em início de carreira e, portanto, escalados para as piores coberturas, iriam fazer reportagens sobre um encontro de prefeitos e vereadores.
Tanta atenção para uma baboseira daquelas, que desde todo o sempre serviu de fachada para que os políticos tivessem diversão garantida bancada pelos cofres públicos, só se justificava porque o prefeito era também o dono da rádio onde eles trabalhavam.
O dinheiro contado mal dava para as despesas. “Luxos”, só mesmo algumas doses de “fogo paulista”, uma mistura horrenda de pinga vagabunda com groselha, e uma visitinha ao puteiro local, ainda assim contando com a generosidade de uma moçoila mais em conta, mais rodada e em, digamos, fim de carreira.
Porque as putas que valiam a pena, preferiam prefeitos, vereadores, assessores mais graduados e mesmo os caipiras com aqueles “errrrrrrrrrrrrrrrrrres” intermináveis, mas com dinheiro no bolso.
Daí que, a dona de pensão, uma velhota lá pelos seus 65 anos, viúva contrita, que era um trombolho repugnante na noite de domingo, passou a ser uma pessoa legal na segunda-feira, simpática na terça-feira, agradável na quarta-feira e atraente na quinta-feira.
Bar das Putas
Daniel Thame
Ano de 1981. O Diário de Osasco finalmente trocava as velhas impressoras e linotipos e passava a ser impresso em off-set. Era como pular da Idade da Pedra para o futuro, sem escalas.
O Diário também deixava de ser temporariamente diário para se tornar semanal, embora continuasse ostentando o título Diário.
Para o Vrejhi Sanazar, dono do jornal, era um salto de qualidade e a oportunidade de atrair anunciantes. Fazer dinheiro, enfim.
Para mim e para o Giovanni Palma, que tocávamos a redação, era o passaporte para a modernidade, poder ousar nos textos, nas fotos, no formato da primeira página.
Mais do que isso: como o jornal seria diagramado e impresso no prédio do Estadão (O Estado de São Paulo) na marginal Pinheiros, era a chance de viver o clima de grande imprensa, cruzar com o pessoal que fazia aquele que na época era o mais influente jornal brasileiro, até ser ultrapassado pela Folha de São Paulo e hoje ter se tornado um porta voz da direita paulista.
Era também uma oportunidade para manter contato com grandes jornalistas, não apenas do Estadão, mas também de outros veículos, já que após o fechamento das edições (naquele tempo os jornais fechavam de madrugada e não eram essa coisa pasteurizada e insossa de hoje, decadentes e superados pela agilidade da internet), o pessoal se dirigia a um ´pé sujo´ na avenida da Consolação, centro velho da capital paulista, onde um churrasquinho ou uma batata frita honestos eram oferecidos a preço justo. Obviamente acompanhados de uma cervejinha, uma batidinha, uma cachacinha.
Ou tudo junto!
O local era chamado de Bar das Putas, porque além dos companheiros jornalistas, as companheiras operárias do amor também batiam ponto lá, fechando a noite de trabalho duro (ops!). Uma convivência harmoniosa, num local que marcou época numa São Paulo ainda sem crack e sem tanta violência.
Foi no Bar das Putas, enquanto entornava uma dose tamanho família de batida de limão e comemorava com o Palma mais uma bela edição do nosso “Diário semanal”, que ouvi a seguinte frase de uma das distintas freqüentadoras:
-O cara quando quer uma puta só pra ele, tem que pagar bem. Se não pagar, vai ter que dividir com os outros e se contentar com as sobras.
Num país onde, diz a lenda, cafetão se apaixona, puta goza, traficante cheira e político honesto é mais raro do que trevo de cinco folhas, a moçoila perpetrou um comentário de antologia.
(Abre parantênses: esse dinossauro da imprensa é de um tempo em que a primeira pergunta que se fazia quando um novato aportava na redação era “você bebe?”.
Se a resposta fosse sim era como se dissesse: “sim eu escrevo bem”. E estava devidamente enturmado porque escrever e beber eram indossociáveis. Fecha parentêses).
E desce mais uma!
Desta feita uma divina batidinha do ABC da Noite, baiano que me tornei, jornalista que sempre foi e, per supuesto, bom bebedor que sempre serei….
TV Cabrália e a galinha morta que não morreu
Daniel Thame
TV Cabrália, meados da década de 90 do século passado. Programa Cabrália Esportiva, Barbosa Filho na apresentação e eu atacando de comentarista.
Numa quarta-feira à noite, o Itabuna jogaria contra a Jacuipense pelo Campeonato Baiano. O Itabuna dependendo de uma vitória para se classificar, a Jacuipense caindo pelas tabelas.
Em vez de apenas comentar, cai na besteira de fazer graça:
-O Itabuna ganha fácil. Pega uma galinha morta…
O que eu não sabia, e nem tinha como saber, era que a delegação da Jacuipense estava concentrada no Itabuna Palace Hotel. E ainda por cima assistindo ao programa.
Antes da bola rolar, entrevistado pela Rádio Difusora, um dos jogadores da Jacuipense avisa:
-Vamos mostrar pra esse comentarista da televisão quem é galinha morta.
Final de jogo, Jacuipense 3×1 Itabuna.
A galinha estava viva. E eu, feito peixe (ou pato?) morri pela boca.
Profissão Repórter-Memórias de um 22 de abril…
Entre as várias reportagens que diz ao longo desses mais de 45 anos de estrada, 36 deles no Sul da Bahia, nenhuma foi mais estressante do que a cobertura dos 500 anos do Brasil em Porto Seguro. O que seria uma comemoração, organizada a caráter para incensar Fernando Henrique Cardoso e ACM, se transformou num festival de pancadaria, perpetrada pela polícia baiana contra índios, negros, sem-terras e estudantes.
Na véspera do fatídico 22 de abril, tive que optar entre ficar em Porto Seguro, onde a festa estava preparada, ou seguir para Coroa Vermelha, onde o clima estava pesado porque os movimentos sociais não se contentavam em fazer figuração no teatrinho armado pelo governo.
Não tive dúvidas: fui a Coroa Vermelha e ao lado da equipe da TV Cabrália, testemunhei uma demonstração de truculência e insanidade que repercutiu em todo mundo. Não perdi nenhuma festa, até porque festa não houve, para desalento do então Rei da Bahia, que ali viu desmoronar o seu sonho de se tornar o Rei do Brasil.
A reportagem foi publicada no jornal A Região. A foto é de Lula Marques.
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Polícia barra povo e FHC
faz festa vip dos 500 anos
Vitória da Conquista, TV Cabrália e os ´riconheiros´ intocáveis. Ou nem tanto
Daniel Thame
Vitória da Conquista, final dos anos 80. A sucursal da TV Cabrália no Sudoeste Baiano dando os primeiros passos e lá estava eu, então gerente de jornalismo da emissora em Itabuna, na fase de ajustes da equipe local.
Tempos tão ´dinossauricos´ que as matérias eram enviadas de ônibus para Itabuna em fitas U Matic e editadas para entrarem nos telejornais.
Pré-histórico, mas ainda assim era inovador, porque a gente editava como se fosse ao vivo no Jornal do Meio Dia e no Repórter Regional.
Eis que o repórter Junior Patente chega da rua com a reportagem da prisão de quatro jovens, com uma senhora quantidade de maconha.
Fita pronta pra ser enviada, o então editor de jornalismo, cujo nome não vem ao caso (gracias Moro!), me diz:
-Essa matéria não pode sair, porque é tudo filho de gente conhecida.
Por “conhecida”, entenda-se, gente com grana ou com poder político.
Fui na jugular:
-E se fosse gente pobre, poderia sair?
O silêncio ensurdecedor do editor foi a resposta que eu esperava.
A matéria saiu e o editor demitiu-se logo depois, embora os jovens nem chegaram a sentir o gostinho da cadeia.
Afinal, em qualquer tempo, certas coisas definitivamente ´não vem ao caso`…
PS-O que vem ao caso é essa PEC que criminaliza o porte de maconha de forma genérica.
Ficamos assim, branco, rico e de bairro nobre com ´trocentos´ quilos é usuário; preto, pobre e da periferia com dez gramas é traficante e cadeia nele.
E viva o Congresso Irracional!
Gol do São Paulo
O ano era 1985. O São Paulo, treinado por Cilinho, decidia o Campeonato Paulista com a Portuguesa, no estádio do Morumbi.
Sãopaulino até a medula, fazia reportagem de campo para a Equipe Furacão de Esportes comandada por Antonio Julio Baltazar, um gigante na história da comunicação da Região Oeste da Grande São Paulo, que já partiu para a Eternidade, na Radio Difusora Oeste, emissora modesta, mas briosa, de Osasco.
O São Paulo tinha um timaço, com Falcão, Silas, Muller, Careca, Sidney e Cia, mas a Lusa endurecia o jogo.
E eu não sabia se reportava os lances ou se torcia. O São Paulo fez 1×0 no primeiro tempo com Careca e levava um sufoco até a metade do segundo tempo, quando Sidney fez 2×0.
A comemoração dos jogadores aconteceu ao lado do gramado, justamente onde eu estava. Foi quando minhas dúvidas acabaram.
Larguei o microfone no chão e fui comemorar com os jogadores. Quando o narrador pediu a descrição do lance, silêncio total.
De cara, cortaram a linha e passei o resto do jogo apenas assistindo, até invadir o gramado para comemorar, desta vez o título.
Como eram tempos românticos, levei apenas uma suspensão de três dias. Sem direito a filar a primorosa refeição no restaurante que Baltazar mantinha na avenida dos Autonomistas.
E, pior dos castigos, não me escalaram mais para os jogos do São Paulo.
Jogar pra perder…
Daniel Thame
Radio Difusora Oeste, Osasco, anos 80 do século passado. O Palmeiras jogava no Pacaembu contra um time do interior (XV de Jaú, Ferroviária, algo assim, a memória é de dinossauro, mas falha).
Times em campo, lá vai esse bravo repórter entrevistar o goleiro Leão. Idolo do Palmeiras, três Copas do Mundo no currículo,
Jogador famoso sempre olhou pra rádio modesta (a nossa era briosa, mas obviamente modesta) com desdém e Leão nunca foi propriamente um exemplo de simpatia. Ainda mais diante da pergunta -vá lá, eu reconheço- idiota que perpetrei:
-Leão, o Palmeiras entrou em campo pra ganhar o jogo?
O goleiro poderia ter feito o que quase todo jogador faz: responder o óbvio, e ir pro jogo, mas Leão optou pelo estilo ´zagueiro de roça`:
-Não, a gente entrou em campo pra perder…
E, sem mais delongas, virou as costas, seguiu pro gol, enquanto meus eventuais ouvintes certamente estavam rindo deste que na época vos falava e agora vos escreve.
Ah, sim. O Palmeiras perdeu pro XV de Jaú, Ferroviária, um time desses aí.
Praga de repórter de rádio pequena também pega.
Repórter-Torcedor
O ano era 1985. O São Paulo, treinado por Clinho, decidia o Campeonato Paulista com a Portuguesa, no estádio do Morumbi. Sãopaulino até a medula, fazia reportagem de campo para a Radio Difusora Oeste, emissora modesta, mas briosa, de Osasco.
O São Paulo tinha um timaço, com Falcão, Silas, Muller, Careca, Sidney e Cia, mas a Lusa endurecia o jogo. E eu não sabia se reportava os lances ou se torcia. O São Paulo fez 1×0 no primeiro tempo com Careca e levava um sufoco até a metade do segundo tempo, quando Sidney fez 2×0.
A comemoração dos jogadores aconteceu ao lado do gramado, justamente onde eu estava. Foi quando minhas dúvidas acabaram. Larguei o microfone no chão e fui comemorar com os jogadores.
Quando o narrador Silva Neto, tão sãopaulino quanto eu, pediu a descrição do lance, silêncio total.
De cara, lá do estúdio da rádio, cortaram a minha linha de transmissão, um trambolho com um fio quilométrico acoplado a uma caixinha e ao microfone que a gente tinha que desenrolar e enrolar antes e depois de cada partida, e passei o resto do jogo apenas assistindo, até invadir o gramado para comemorar, desta vez o título, em meio a torcedores e jogadores.
Como eram tempos românticos, levei apenas uma suspensão de três dias.
E, pior dos castigos, não me escalaram mais para os jogos do São Paulo.
Dedé do Amendoim, vascaíno, petista. E eterno!
Após 46 anos percorrendo os bares de Itabuna com sua inseparável bicicleta, vendendo amendoim e ovo de codorna, Dorival Higino da Silva, também conhecido como Dedé do Amendoim ou, por motivos óbvios, Tesão, pendurou as chuteiras e os pedais em 2016.
Com oito filhos criados graças à sua labuta incansável, foi curtir a família e torcer/sofrer com o Vasco da Gama, seu time de coração, até ser acometido de uma enfermidade que o manteve recluso em casa.
Como Pelé, deixou sucessores na labuta para ganhar honestamente o suado pão de cada dia, mas não substitutos, porque Dedé era dessas figuras que mereceram o adjetivo “insubstituível”.
Dedé do Amendoim é, ao lado do Caboco Alencar, que teve que fechar o ABC da Noite por conta da pandemia e só agora promove uma reabertura gradual funcionando apenas aos sábados, é seguramente um dos personagens mais fascinantes da boemia itabunense, com histórias que dariam um livro.
Uma delas, ocorrida em meados dos anos 90, dá bem a dimensão do estilo Dedé. Vendia ele seus amendoins e seus ovos de codorna no Katiquero, vestindo com orgulho uma camisa do PT, quando um desses babacas que infelizmente poluem os bares perpetrou:
-Tira a essa camisa horrível que eu compro tudo…
Ao que Dedé respondeu na lata:
-Pois pra gente como você eu prefiro não vender nada…
E seguiu em frente, com sua bicicleta e sua dignidade.
Em 2022 Dedé foi vender seus ovos de codorna e seus amendonis lá no céu (fico aqui imaginando uma orgia angelical dados os efeitos propagados do amendoim).
Em tempo 2: O Katiquero reabriu com outro nome e outro proprietário . Ou seja, não reabriu…
Foi num Carnaval que passou…
A TV Cabrália ainda não tinha completado três meses quando Nestor Amazonas (a quem o Sul da Bahia, repito pela 1000000ª. vez, ainda deve o devido reconhecimento) decidiu fazer a transmissão ao vivo do Carnaval de Itabuna, na época ainda concentrado na Praça Adami..
Era um desafio e tanto, mas pra Nestor, desafio era algo do tipo “vão lá e façam essa porra”, ainda que a gente estivesse engatinhando no negócio de televisão e nem tivesse idéia do que era “essa porra”, uma transmissão ao vivo, em média oito horas por noite, quatro noites de folia.
Escalado para ancorar a transmissão, Barbosa Filho, talento intuitivo e hoje bem sucedido empresário de tevê, comandando a TV Itabuna, foi instalado numa cabine em frente ao palco.
Na base da empolgação de quem estava fascinado com a novidade de trabalhar em televisão, tocamos a transmissão numa boa, até porque carnaval não é lá o reinado da serenidade e certos exageros são permitidos e/ou nem notados.
Mas, reconheço, dois desses exageros, merecem entrar para os anais da televisão.
No primeiro, Barbosa, tomado pela empolgação diante de uma grande multidão, perpetrou:
-Cerca de 100 mil pessoas lotam o trecho de 5 quilômetros da Avenida Cinquentário entre a Praça Camacan e a Praça Adami.
Problema 1: o trecho em questão tem meros 500 metros, se tanto.
Problema 2: 100 mil pessoas, ainda que coubessem num espaço tão exíguo (se alguém usar o termo exíguo em televisão merece demissão sumária), representavam quase 70% da população de Itabuna à época.
A segunda barrigada vai na conta desse dinossauro que ora vos escreve. Mesmo vendo pelo circuito interno que a Praça Adami estava com pouca gente e não havia nenhum trio elétrico tocando, pedi pro apresentador que estava no estúdio chamar o link ao vivo e perguntar qual era a atração naquele momento.
Pego de surpresa, Barbosa só conseguiu responder:
-Como não tem banda tocando, a grande atração aqui é a equipe da TV Cabrália.
Era mesmo, mas Nestor, que só acompanhava a transmissão de sua sala, parece não ter concordado, pegou o telefone e me disse com a sutileza costumeira.
-Diz ao Barbosinha que a grande atração na praça deve ser a mãe dele…
Claro que eu não disse, até porque de atração já bastava a equipe da TV Cabrália. E o bestalhão aqui teria que incluir a própria genitora também.
(Abre parêntese: Barbosa não tinha como saber, mas fez escola: nos anos seguintes, nas caminhadas eleitorais, não era raro se divulgarem números do tipo 50 mil, 70 mil, 100 mil pessoas e fosse a campanha um pouco mais demorada, era arriscado ter mais militante do que eleitor, algo como 200 mil, 250 mil pessoas na Cinquentenário. Fecha parênteses).
A TV Cabrália é hoje um retrato amarelado na parede da memória, que as vezes retorna ao vivo em lapsos de saudade.
Que passa, como tudo é passageiro.
Menos o motorista e o cobrador…