:: ‘Manoel Leal’
Manoel Leal e o toca fitas
Daniel Thame
Essa aconteceu lá pelos idos de 1980 e poucos, nos tempos em que ainda existiam toca-fitas e que ainda dava pra amarrar cachorro com lingüiça.
O inesquecível Manoel Leal, diretor do jornal A Região (Itabuna) teve o seu toca fitas roubado, depois que o ladrão conseguiu abrir a porta do carro, que ele deixava quase sempre sem trancar.
Leal estava quase conformado com o roubo, quando ligaram da delegacia e avisaram que apreenderam um monte de toca fitas com um receptador.
Chegando no Complexo Policial, Leal se vê diante de uns 20 toca-fitas. O delegado perguntou:
-“Seu” Manoel, qual desses toca-fitas é o do senhor?
Manoel Leal, no melhor estilo Manoel Leal, respondeu:
-É um que a gente bota a fita dentro e toca musica.
Dito isto, pegou o toca fitas de melhor aparência e saiu, sem que nada mais lhe fosse perguntado.
ACM, Leal e o cheque pré-datado
Inicio da década de 90. A pretexto de inaugurar novas salas de aula numa escola da rede estadual, Antonio Carlos Magalhães, o todo poderoso governador da Bahia, fez um ato público na praça Adami, centro de Itabuna.
Era só pretexto mesmo. O que ACM fez foi desancar, com a verborragia habitual, seu ex-aliado Manuel Leal, dono do jornal A Região, que lhe fazia ferrenha oposição.
Embora fosse à época o jornal de maior circulação no Sul da Bahia, A Região era tratada, bem ao estilo ACM, sem pão nem água pelo Governo do Estado. Publicidade zero.
Mas o caudilho queria mais. Depois de atacar Leal, que assistia tudo da sede do jornal, bem ao lado da praça, ACM falou sem rodeios:
-Quem for meu aliado, meu amigo, não anuncia nesse jornal de merda…
Dias depois, apareceu na sede do jornal um empresário com veleidades de entrar na política, para pagar um anuncio de sua loja.
E, para não deixar dúvidas, preencheu o cheque com data anterior ao discurso-ordem de ACM.
Manuel Leal, que não era Manuel Leal por acaso, não descontou o cheque. Durante muito tempo exibiu-o, aos risos, aos amigos, como exemplo da “coragem” de alguns de nossos concidadãos.
O jornal, apesar das bravatas de ACM, sobreviveu. O velho capo não teve a mesma sorte.
Ferreirinha, Jô Soares, Manoel Leal. Onze e Meia…
Daniel Thame
,No início da década de 90, então no vigor dos seus 80 anos, Ferreirinha ficou mundialmente conhecido após se casar com a estudante Iolanda, nos seus tenros com 15 anos. Foi tema de reportagens em jornais de todo o planeta e concedeu uma entrevista antológica no programa Jô Onze e Meia, no SBT, onde foi triunfalmente apresentado por Jô Soares como o “Garanhão de Itabuna”.
A entrevista com Jô, que levou seu monumental talento para a eternidade, foi acertada após o envio de um exemplar do Jornal A Região por Manoel Leal à produção do programa. O jornal, à época vivendo seu auge, foi o responsável pela divulgação inicial da insólita união.
Como Ferreirinha, já passando os 80 anos e com Yolanda batendo o pé e se negando a acompanhar o esposo, coube a este jornalista (então editor de A Região), levá-lo a São Paulo.
Antes de viajar, Leal comprou uma camisa florida (estilo Jorge Amado) para usar no programa e orientou que se Jô Soares perguntasse o segredo da propalada potência sexual, a reposta era: “muito suco de cacau”.
Na viagem de avião, Ferreirinha foi me contando-repetindo todas as suas peripécias sexuais, a ponto de eu me perguntar se ele teria coragem de dizer tudo aquilo no programa.
Disse e levou Jô Soares e a platéia (composta majoritariamente por estudantes) às gargalhadas, imitando o famoso gesto da posição “receba, galinha”, a sua preferida, antes das núpcias com Yolanda, bem entendido.
Diante de um Jô Soares surpreso com tanta desenvoltura e todos os presentes à gravação encantados com aquele senhor com jeito de menino sapeca, Ferreirinha confirmou que o segredo de levar a jovem esposa à exaustão a ponto de que era ela e não ele quem pedia para parar os arrufos na cama, era mesmo o tal suco de cacau.
Foi o suficiente para Jô Soares pedir: “atenção meus amigos do Sul da Bahia, me mandem vários pacotes de suco de cacau!”
Por obra e graça (coloca graça nisso!) de Jô Soares, Ferreirinha ficou conhecido como “O Garanhão de Itabuna”, título do qual se orgulhava e procurava manter, sempre se vangloriando de seus “dotes garanhísticos”, até falecer (lúcido e bem humorado), aos 99 anos, cercado pelo amor de Iolanda do dos familiares.
A entrevista foi um sucesso tão estrondoso que foi repetida entre as melhores do ano. Ferreirinha só não pode usar a camisa amadiana, porque como o voo atrasou, fomos levados diretamente para o estúdio. Durante a entrevista (sem imaginar que a gravação já estava valendo), Ferreirinha dizia a um Jô atônito que precisava vestir a camisa que Leal lhe deu.
Manoel Leal, Ferreirinha, Jô Soares. Deus deixa o céu mais habitável. E esse planetinha tão judiado pelo homo (sic) sapiens cada vez mais pobre de personagens dessa dimensão.
De Manoel a Marcel, um jornal que tem alma
Daniel Thame
Lá se vão 35 anos. Manoel Leal ainda está sentado naquela mesa da redação onde, como diria Nelson, o Gonçalves, está faltando ele. Memória, apenas memória. Manoel Leal, `el viejo Capo`, agora está num local chamado eternidade, como diria, Eduardo, o Anunciação. Citações, anunciações e memórias, passado e presente. História, num jornal feito de histórias.
O jornal A Região pode ser definido mais ou menos assim: Hélio Pólvora, escritor e jornalista de renome nacional, era o arco. Manoel Leal era a flecha, tantas vezes letal, um homem que estava longe de ser santo, mas, isso tem que ser dito e repetido, tinha infinitamente mais virtudes do que defeitos. E que não fazia tipo, não posava de vestal, não bancava um personagem. Era ele mesmo e ponto final.
Um ano depois da fundação do jornal, Hélio foi gastar seu monumental talento em outras paragens. E lá fui eu, paulista recém-chegado de São Paulo, mochileiro das estradas de nuestra America, sendo devidamente arraigado neste chão que fisga e fixa, fazer a dupla improvável com Leal, duas flechas disparando sem arco, em que muitas vezes me peguei pensando se aquilo tudo era coragem ou loucura mesmo. Opção B.
Denuncias de fraude no Vestibular da Uesc, tráfico de crianças para a Itália, falcatruas no recebimento de recursos para a lavoura cacaueira, máfia dos cartões de crédito, esquema de venda da Emasa, superfaturamento de obras públicas, tentativa de fraude nas eleições para deputado estadual e federal, vendas de sentenças judiciais, irregularidades na concessão de alvarás de taxis, etc., etc., etc. e coloca ainda uma infinidade de eteceteras, tantas foram as manchetes devidamente documentadas, produzidas ao longo dessas quase três décadas.
Digna de figurar em qualquer antologia da imprensa grapiúna no século XX, é a manchete “ACABOU!”, em letras garrafais e com direito a exclamação, determinando o que ninguém queria admitir, o cacau como riqueza inesgotável e imune a crises estava entrando para a categoria papai noel, cegonha, saci pererê e quetais.
Manoel Leal era implacável, mas não menos bem humorado. Os leitores mais antigos devem se lembrar do impagável colunista social Dick Emery, que despontou em meio aos consagrados e então semi-deuses Charles Henry, Diego Caldas, Joseph Marie, Serafim Reis, Dikas e Pedro Ivo Bacelar.
De Dick Emery, sucesso instantâneo no então resplandecente high society dos derradeiros tempos áureos do cacau, dizia-se que era por demais tímido, visto que não aparecia nos regabofes. Tímido e virtual, mesmo em tempos pré-internet, já que o tal Dick era ninguém menos que o próprio Leal, num de seus típicos acessos de ironia. Dick sumiu tão misteriosamente como surgiu. O high society, como se denota, ainda finge-se de vivo, mortinho que esteja vitimado por uma bruxa vassourenta. Aparências nada mais, diria Marcio, o Greik.
Numa noite de janeiro de 1997, um divisor de águas num Mar Vermelho de sangue e vergonha. Manoel Leal era covardemente assassinado, crime de mando que até hoje surfa nas tranquilas ondas da impunidade.
Calaram uma voz, mas ao contrário do que esperavam seus covardes algozes, não calaram o jornal. E Marcel Leal, filho de Manoel, teve que deixar a zona de conforto da Rádio Morena FM para assumir o jornal, num momento que era mais cômodo recuar do que seguir no combate.
Recuo não houve e, mesmo sem o espírito intrépido e indomável, no limite da irresponsabilidade, do pai, Marcel vem tocando o jornal com a mesma coragem de enfrentar poderosos e denunciar maracutaias em pequena e larga escala. O jornal não perdeu a sua essência. Denuncia sem medo, incomoda.
A Região, atualmente mais digital do que impresso e com uma assustador guinada à direita (e bota direita nisso) o que democraticamente respeito embora discorde, continua combativa e combatente, fugindo da mesmice e do oba-oba reinantes.
Resistir edição após edição, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Esse é certamente o grande trunfo, a conquista a ser comemorada. Vitória de pirro, dirão os despeitados. Vitória de ´hombres`, direi eu paulista-baiano-cubano das terras do cacau por obra e graça de Manoel Leal.
Marcel Leal resiste. Desafia a lógica de parar com essa aventura insana e seguir sua vida. A Região caminha para os 40 anos, rumo a um futuro que hoje é apenas a edição seguinte, de vez em quando impressa, parida a ferro e fogo na entranha de dificuldades imensas.
Discordo (se fosse apenas para ficar no confete essas bem ou mal traçadas linhas se tornariam ponto fora da curva num jornal contestador por excelência) de seu antipetismo visceral, como ele certamente discorda do meu petismo-lulismo visceral. Algumas de suas Cartas ao Leitor poderiam figurar com louvor nas abomináveis vejas, folhas e globos da vida. Mas respeito, porque ambos sabemos como dói perder alguém tão querido pelo simples fato de exercer a liberdade de expressão.
Assim como o glorioso Barcelona é ´más que un club`, porque representa a insubmissão catalã à Espanha, A Região é mais que um jornal, embora seja uma exceção de inconformismo e coragem numa região que invariavelmente se dobra de joelhos ao mandatário de plantão.
Antonio Lopes, Rose Marie Galvão, Vilma Medina, Rosi Barreto, Domingos Matos, Davidson Samuel, Ailton Silva, Luiz Conceição, Walmir Rosário, Neandra Pina, Carlos Barbosa, Jorge Wilton, Vera Rabelo, Kleber Torres, Flávio Monteiro Lopes, Marcos Maurício, Mauricio Maron, Valério Magalhães. Balseros nessa travessia de muitas tormentas, mas inegavelmente gratificante, de fazer um jornal com alma.
E nem se diga que Manoel Leal é apenas um retrato amarelado na parede ou uma placa de metal na praça que leva seu nome. É ele essa tal alma que não deixa a chama se apagar.
Fogo aceso, segue o jogo, Marcel Leal…
Manoel Leal, notícias de jornal e outras histórias
Daniel Thame
Há 24 anos, no início da noite de 14 de janeiro de 1998, seis tiros calaram Manoel Leal.
Ainda que assassinos e mandantes continuem protegidos pela impunidade, não se vai aqui repetir o que se escreveu ao longo dos anos, até por ser desnecessário, tanto o que já se falou sobre o crime.
O que vai se fazer aqui é uma homenagem.
Manoel Leal de Oliveira. O maior jornalista que já surgiu nesse chão grapiuna.
Manoel Leal de Oliveira, o cordeiro que às vezes brincava de ser lobo.
Manoel Leal, o que assumia os defeitos e não espalhava as virtudes que tinha.
Manoel Leal.
Nunca, em tempo algum, uma ausência se fez tão presente.
Desconheço, ao longo dos anos, uma conversa de bar que não tivesse convergido para seu nome. Que não remetesse a alguma história protagonizada ou inventada por ele.
Manoel Leal das malhas impagáveis, como a do soco que Carlito do Sarinha deu em Hamilton Gomes, quando na verdade Hamilton foi quem bateu em Carlito. “No meu jornal, amigo meu não apanha, só bate”.
Dos trocadilhos impagáveis com o amigo Hermenegildo, a quem dizia ser muito ágil, numa referência nada sutil à palavra ágio. Amigos, tanto que nas horas de aperto, lá estava Leal batendo às portas do ágil Hermenegildo. E sem pagar ágio.
Da piada infame que contava centenas de vezes, e só ele achando graça, na presença de Roberto Abijaude:
-Vocês árabes são muito unidos…
E completava:
-Também, vieram para o Brasil amarrados no porão do mesmo navio.
Da maldade com uma amiga paulista que fez comer o bago de jaca, até então uma fruta desconhecida para a mulher.
Do fogão novo enviado “por engano” para a casa do amigo Flávio Monteiro Lopes, apenas para que a esposa pensasse que ele tinha outra.
Das flores enviadas semanalmente para Nilson Franco, em nome de uma mulher misteriosa.
O Manoel Leal que pegava a máquina fotográfica e ficava na porta da Cesta do Povo fotografando as dondocas que escondiam o rosto com suas bolsas de grife. Isso num tempo (e bota tempo nisso!) em que Cesta do Povo era coisa de pobre.
De uma generosidade que não cabia no coração cambaleante.
E. vamos ao que interessa, de um talento para fazer jornal, do qual não apenas fui infinitas vezes testemunha como também co-autor, que é possível dizer sem correr o risco de cair no ridículo que nunca haverá alguém como Manoel Leal.
Esse faro para a notícia aliado a um destemor apavorante fez de A Região um jornal que não era apenas um veículo de comunicação.
A Região era aguardado nas bancas. Algumas de suas edições se esgotavam logo no domingo, menos de 24 horas após o jornal começar a circular.
E não eram apenas as Malhas Finas e Malhas Grossas, capazes de arrasar reputações ou garantir gozações ao longo de uma semana.
A notícia, muitas vezes exclusiva, muitas e muitas vezes corajosa, algumas vezes beirando a irresponsabilidade, era o combustível que alimentava o jornalista Manoel Leal.
Tráfico de Crianças, Importação de Cacau, Esquema dos “Cabritos” envolvendo autoridades, Fraude no Vestibular da Uesc, Liberação dos recursos do cacau para o então governador Paulo Souto sem as garantias necessárias. E mais uma infinidade de notícias que A Região deu porque só Leal sabia ou porque só Leal tinha coragem de publicar.
Manoel Leal era um garimpeiro de notícias. Isso é raro.
Numa noite de 1996, véspera da eleição municipal. A Justiça determina a apreensão da edição do jornal.
Ordem cumprida com um batalhão de PMs armados até os dentes na porta da gráfica. Leal calmo.
Quando a polícia sai, pergunto:
-Você entregou o jornal assim, sem mais nem menos?
A resposta, seca, irônica.
-Menino, você não notou nada? Eles levaram mil jornais. O resto está aí no fundo.
Na madrugada, milhares de exemplares da edição apreendida eram espalhados pela cidade.
No episódio da denuncia de fraude no Vestibular da Uesc, talvez o maior furo da história do jornal e de toda a imprensa itabunense, a edição sendo impressa na gráfica, Manoel Leal liga aflito para minha casa:
-E se esse negócio não for verdade?
Duas horas da madrugada, morto de sono, igualmente aflito com a possibilidade de uma barrigada monumental, só consigo responder:
-Nós dois estamos fodidos.
No dia em que um navio trazendo cacau atracou no porto de Ilhéus, Leal esqueceu-se que era jornalista (porque também era produtor) e postou-se feito um Dom Quixote diante da embarcação, tentando impedir o desembarque.
Simbólico, embora hoje soe apenas engraçado.
O tempo tem dessas coisas.
Há que se cobrar, até a punição dos responsáveis, que o assassinato de Manoel Leal seja esclarecido. Porque esse é um crime que, decorridos cinco, dez, cinquenta, cem ou quinhentos anos, vai permanecer como uma mancha na história da cidade
Há também que se resgatar histórias de alguém que, parafraseando Nietszche, era “humano demasiadamente humano”.
Nas virtudes, nos defeitos. Na vida e na morte.
Mesmo para quem, entendam como quiserem, não morreu.
Valéria Leal lança book trailer ´O Crime por um Fio`
Após pouco mais de um ano do lançamento do livro “Crime por um Fio” – biografia na área de perícia criminal -, a perita forense e fonoaudióloga Valéria Leal, que atua na Bahia, divulgou, um booktrailer baseado no livro. O vídeo, com duração de pouco mais de três minutos e locução de Mariana Ximenes, é uma produção independente que tem como objetivo estimular produtoras a se interessarem pelo produto.
Valéria Leal, nascida em São Paulo, filha do jornalista Manoel Leal, diretor do jornal A Região, de Itabuna, covardemente assassinado no dia 14 janeiro de 1998 (crime até hoje impune), é fonoaudióloga graduada na PUC-SP, especialista em voz e perita forense de vestígios em arquivos digitais. É também consultora em Comunicação Humana com experiência em Análise Perceptivo-Auditiva e Acústica dos Padrões de Voz, Fala e Linguagem.
Na obra “O crime por um fio”, a autora decidiu transformar alguns dos mais importantes casos policiais dos últimos anos em relatos, do ponto de vista de uma perita. O livro publicado pela editora Chiado tem 120 páginas, custa R$ 32,00 e pode ser adquirido nos sites da Livraria Saraiva, Cultura e Travessa.
Assista
Meu eterno Capo
Hoje se se completam 19 anos do assassinato de Manoel Leal. Para homenagear o velho Capo encontrei nos meus alfarrábios esse texto escrito em 2003.
Incrível como parece atual. Leal é dessas pessoas que morrem mais parecem vivas.
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Manoel Leal, notícias de
jornal e outras histórias
Há exatos cinco anos, no início da noite de 14 de janeiro de 1998, seis tiros calaram Manoel Leal.
Ainda que assassinos e mandantes continuem protegidos pela impunidade, não se vai aqui repetir o que se escreveu ao longo dos anos, até por ser desnecessário, tanto o que já se falou sobre o crime.
O que vai se fazer aqui é uma homenagem.
Manoel Leal de Oliveira. O maior jornalista que já surgiu nesse chão grapiuna.
Manoel Leal de Oliveira, o cordeiro que às vezes brincava de ser lobo.
Manoel Leal, o que assumia os defeitos e não espalhava as virtudes que tinha.
Manoel Leal.
Nunca, em tempo algum, uma ausência se fez tão presente.
Desconheço, ao longo dos anos, uma conversa de bar que não tivesse convergido para seu nome. Que não remetesse a alguma história protagonizada ou inventada por ele.
Manoel Leal das malhas impagáveis, como a do soco que Carlito do Sarinha deu em Hamilton Gomes, quando na verdade Hamilton foi quem bateu em Carlito. “No meu jornal, amigo meu não apanha, só bate”.
Dos trocadilhos impagáveis com o amigo Hermenegildo, a quem dizia ser muito ágil, numa referência nada sutil à palavra ágio. Amigos, tanto que nas horas de aperto, lá estava Leal batendo às portas do ágil Hermenegildo. E sem pagar ágio.
Da piada infame que contava centenas de vezes, e só ele achando graça, na presença de Roberto Abijaude:
-Vocês árabes são muito unidos…
E completava:
-Também, vieram para o Brasil amarrados no porão do navio.
Da maldade com uma amiga paulista que fez comer o bago de jaca, até então uma fruta desconhecida para a mulher.
Do fogão novo enviado “por engano” para a casa do amigo Flávio Monteiro Lopes, apenas para que a esposa pensasse que ele tinha outra.
Das flores enviadas semanalmente para Nilson Franco, em nome de uma mulher misteriosa.
O Manoel Leal que pegava a máquina fotográfica e ficava na porta da Cesta do Povo fotografando as dondocas que escondiam o rosto com suas bolsas de grife. Isso num tempo (e bota tempo nisso!) em que Cesta do Povo era coisa de pobre.
De uma generosidade que não cabia no coração cambaleante.
E. vamos ao que interessa, de um talento para fazer jornal, do qual não apenas fui infinitas vezes testemunha como também co-autor, que é possível dizer sem correr o risco de cair no ridículo que nunca haverá alguém como Manuel Leal.
Esse faro para a notícia aliado a um destemor apavorante fez de A Região um jornal que não era apenas um veículo de comunicação.
A Região era aguardado nas bancas. Algumas de suas edições se esgotavam logo no domingo, menos de 24 horas após o jornal começar a circular.
E não eram apenas as Malhas Finas e Malhas Grossas, capazes de arrasar reputações ou garantir gozações ao longo de uma semana.
A notícia, muitas vezes exclusiva, muitas e muitas vezes corajosa, algumas vezes beirando a irresponsabilidade, era o combustível que alimentava o jornalista Manuel Leal.
Tráfico de Crianças, Importação de Cacau, Esquema dos “Cabritos” envolvendo autoridades, Fraude no Vestibular da Uesc, Liberação dos recursos do cacau pelo então governador Paulo Souto sem as garantias necessárias. E mais uma infinidade de notícias que A Região deu porque só Leal sabia ou porque só Leal tinha coragem de publicar.
Manoel Leal era um garimpeiro de notícias. Isso é raro.
Numa noite de 1995, véspera da eleição municipal. A Justiça determina a apreensão da edição do jornal.
Ordem cumprida com um batalhão de PMs armados até os dentes na porta da gráfica. Leal calmo.
Quando a polícia sai, pergunto:
-Você entregou o jornal assim, sem mais nem menos?
A resposta, seca, irônica.
-Menino, você não notou nada? Eles levaram mil jornais. O resto está aí no fundo.
Na madrugada, milhares de exemplares da edição apreendida eram espalhados pela cidade.
No episódio da denuncia de fraude no Vestibular da Uesc, talvez o maior furo da história do jornal e de toda a imprensa itabunense, a edição sendo impressa na gráfica, Manoel Leal liga aflito para minha casa:
-E se esse negócio não for verdade?
Duas horas da madrugada, morto de sono, igualmente aflito com a possibilidade de uma barrigada monumental, só consigo responder:
-Nós dois estamos fodidos.
No dia em que um navio trazendo cacau atracou no porto de Ilhéus,
Leal esqueceu-se que era jornalista (porque também era produtor) e postou-se feito um Dom Quixote diante da embarcação, tentando impedir o desembarque.
Simbólico, embora hoje soe apenas engraçado.
O tempo tem dessas coisas.
Há que se cobrar, até a punição dos responsáveis, que o assassinato de Manoel Leal seja esclarecido. Porque esse é um crime que, decorridos cinco, dez, cinquenta, cem ou quinhentos anos, vai permanecer como uma mancha na história da cidade
Há também que se resgatar histórias de alguém que, parafraseando Nietszche, era “humano demasiadamente humano”.
Nas virtudes, nos defeitos. Na vida e na morte.
Mesmo para quem, entendam como quiserem, não morreu.
A última edição de A Região
O editor do jornal A Região, Marcel Leal, confirmou o encerramento da edição impressa, que circula pela última vez nesta semana. Desde o início de 2016, o jornal já não mantinha a regularidade na edição semanal´.
De acordo com Marcel Leal, a receita com publicidade e venda em bancas cobre apenas 10% dos custos operacionais, tornando inviável a versão impressa, que pode ocasionalmente circular em datas especiais como Natal e Ano Novo. Marcel alega ainda que, embora seja o jornal preferido dos leitores, de acordo com pesquisa da Sócio Estatística, A Região é sistematicamente ignorada pelos anunciantes.
Fundado em abril de 1987 apor Manoel Leal, brutalmente assassinado em janeiro de 1998, o jornal A Região marcou época por matérias de repercussão nacional como a fraude no vestibular da Uesc, o ocaso da lavoura cacaueira após a chegada da vassoura-de-bruxa, o tráfico de crianças no Sul da Bahia, a Máfia dos Cartões de Crédito e histórias que ganharam o planeta, como o casamento do fazendeiro Ferreirinha, então com 80 anos, e a estudante Yolanda, no desabrochar dos seus 16 anos.
A Região teve entre seus editores Hélio Pólvora, Antônio Lopes, Luiz Conceição, Walmir Rosário e Daniel Thame (que comandou o jornal no período crítico após a morte de Leal) e revelou nomes como Davidson Samuel, Ailton Silva, Domingos Matos, Simone Nascimento e Mauricio Maron.
“É o fim de um ciclo, fecha-se uma página da história da imprensa sulbaiana, que nem a versão impressa irá preencher e que simbolicamente é a morte definitiva de Manoel Leal, que de uma certa forma sobrevivia a cada edição do jornal”, diz o jornalista Daniel Thame, que com pequenos intervalos, integrou A Região do primeiro ao derradeiro número.
Valéria Leal lança “O Crime por um Fio”, ficção que é um tributo a Manoel Leal
A fonoaudióloga itabunense Valéria Leal está lançando o livro “O Crime por um fio”, pela Editora Chiado. O livro é o retrato ficcional da atualidade e destaca o papel da ciência forense na solução de crimes, da favela no Planalto Central do Brasil. A protagonista da trama, a perita forense Isadora Romanesky, trabalha para a A.N.I – Agência Nacional de Inteligência – com sede no Rio de Janeiro, desvendando diversos casos de violência urbana. O jornalista investigativo Beto Lopes, do Jornal da Manhã, revela um dossiê sobre contas ilegais nas Ilhas Cayman. A busca pela verdade e a justiça será uma verdadeira obsessão.
Valéria Leal, é filha do jornalista Manuel Leal, fundador e diretor do jornal A Região (Sul da Bahia), assassinado a tiros em janeiro de 1998, num típico crime de mando, em que até hoje os responsáveis permanecem impunes. De acordo com Ricardo Trotti, Jornalista e diretor executivo da Sociedade Interamericana de Imprensa, que assina o prefácio do livro, “obsessão pela verdade e a justiça são dois elementos que me fascinam no conto de Valéria Leal, O Crime por um Fio: constrói uma ficção que é real, dolorosa e desesperada, como o clima de violência e corrupção que envolve uma sociedade que pode ser a pior e habitar qualquer país, e descreve uma impressionante similitude de caráter, conhecimentos e destreza que precisa possuir quer um perito forense, quer um jornalista para fazer um trabalho de investigação eficiente, com a esperança de construir uma sociedade melhor”.
“Este livro não é uma alegoria à consciência criminal das nossas sociedades, mas sim uma ópera dramática à esperança de uma sociedade mais digna. É o que Valéria Leal aprendeu do seu pai, a sua inspiração. É a ele quem dedica as suas lágrimas, agora gozosas, e este livro, o seu tributo póstumo. Mas também por meio de Manoel, cuja memória impregna estas páginas, a autora rende homenagem a centenas de jornalistas dos quais, no Brasil, na América Latina e no mundo inteiro, arrebataram-lhes a vida enquanto trabalhavam por descobrir a verdade”, afirma Ricardo Trotti.
“O crime por um fio” pode ser adquirido online na Livraria Saraiva e Livraria Cultura. No Brasil o livro custará 32,00. A Editora Chiado está presente em países como Portugal, Alemanha, Itália, USA, Inglaterra, França. O livro está sendo vendido também em euros no site da Chiado Editora, a10 euros livro físico e 3 euros na versão digital.
Marcel Leal anuncia fim da edição impressa de A Região

Na capa à direita, a manchete silenciosa do assassinato de Manoel Leal. O jornal sobreviveu mais duas décadas
Em sua “Carta ao Leitor” desta semana, o diretor e editor de A Região, Marcel Leal, anunciou o fim da edição impressa do jornal a partir de outubro, após 29 anos de circulação semanal no Sul da Bahia.
Marcel justifica o fim da edição impressa afirmando que “embora seja o jornal mais lido, é ignorado pelos anunciantes. A venda nas bancas continua boa, mas não cobre nem 10% do custo de fazer um jornal de qualidade”. “ Não temos mais como bancar uma edição impressa que não se paga e é responsável por 80% dos custos. Só faremos edição impressa em ocasiões especiais, como o Natal”, afirma Marcel.
Fundando por Manoel Leal, pai de Marcel, A Região se consolidou como um dos mais combativos órgãos de imprensa do Estado e em sua primeira década, leitores chegavam a esperar nas bancas pelo jornal, famoso por reportagens exclusivas e pelas ´Malhas Finas` e `Malhas Grossas`, que traziam a marca da irreverência de Leal.
Manoel Leal foi assassinado num crime de mando em 1988 e até hoje os mandantes não foram identificados ou punidos. Marcel Leal assumiu o jornal e manteve a publicação, que com o fim da edição impressa, terá apenas a edição online.