ernestoPor Ernesto Marques

ernesto marquesPosterguei a escrita de um texto com a previsão do óbvio: mais dia, menos dia, teríamos vítimas da intolerância para enterrar. É devastador ser obrigado a admitir que palavras reunidas no texto mais contundente e profundo que se possa escrever sobre o pino da granada puxada em Foz do Iguaçu, são, a esta altura, completamente insuficientes.
Não apenas porque não trarão Marcelo Arruda de volta para a família e para a cidade que o tinha como bom filho. Família…
O mais devastador é saber da possibilidade, quase certeza, de lágrimas em torrentes. Futuras e bem próximas. Basta dar uma espiadinha básica no que se diz nas bolhas da intolerância armada, onde moderados patridiotas, relativizam o absurdo. Os moderados relativizam. Outros, não se sabe se maioria ou minoria, festejam e glorificam a barbárie.

Mas não é necessário visitar as tais bolhas, basta ver as declarações do “mito”. Dispensar o apoio de quem pratica violência contra opositores seria até um avanço, considerando que o inominável já recomendou metralhar petistas. Nas palavras do presidente da República, nenhum respeito a quem morreu.

Pior: o “mito” autoproclamado defensor dos profissionais da segurança mostrou mais uma vez que antes de gostar de armados, ele gosta dos “seus” armados. Depois de assassinado por um insano açulado pelo discurso do ódio, o guarda civil Marcelo Arruda é moralmente morto pela maior autoridade do país, ao ser nivelado ao celerado que o matou diante da filha recém-nascida.
Mas o “mito” vai mais longe. Mente, escarra na história e contamina o sangue derramado com seus perdigotos.

Metade do cinismo asqueroso dissimula o discurso da violência numa condenação tíbia. A outra metade da dose cavalar de cinismo é investida para açular a tribo a subir ainda mais o tom na disposição para o ódio.
Ingenuidade esperar ou pedir que o outro lado, em luto, não lute e simplesmente ofereça a outra face, oferecendo também outros corpos como alvos da disposição permanente para a violência. Nunca foi assim e, sejamos francos, nunca será.

 

A poucos dias da Queda da Bastilha, esqueçamos os “ismos” e lembremos apenas do parlamento da Assembleia Nacional Francesa, dividido entre esquerda e direita muito antes do Manifesto Comunista.
Ao longo de séculos, na Bahia dos malês e do 2 de Julho, pessoas com discernimento para escolher o lado esquerdo daquele plenário histórico, em qualquer tempo e lugar, nunca foram passivas. Brasil afora, não é diferente. Militares traídos e insubmissos do Caparaó, jovens idealistas do Araguaia, guerrilheiros urbanos, sindicalistas, religiosos, quilombolas, indígenas, sem-terra, sem-teto…

A lista é extensa. Antes de Dom, Bruno e Marcelo, muita gente. Uma gota por nome lembrado, choraríamos aos litros. Até quando? Não se pode discursar pela vingança, tampouco se pode admitir recuos. Quem, e com que ânimo, irá às ruas por justiça hoje e pela paz, amanhã? Quando é hoje? Quando será o amanhã?
Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução, disse Che. Tomando licença sem pedir ao xará, coloco a máxima guevariana diante de um meu espelho retórico-semântico: quando o bizarro se torna cotidiano, é a barbárie.

Mas infelizmente não é só uma questão semântica e já abandonamos o debate retórico. Agora é à vera, não mão grande – aliás, é na bala, já que, segundo o mito, todo brasileiro deveria ter um fuzil.
Barbaridades por vir não serão contidas ou evitadas apenas com discursos pacificadores. Até porque, só um lado tenta organizar um discurso pacificador, enquanto o outro, jocosamente, faz aniversário com uma arma no bolo.

Nós, jornalistas, erramos quando rotulamos de “excêntrico” um sujeito fascista por natureza, cultor da censura e da tortura, racista, misógino e homofóbico. E mesmo depois de prometer, entre outros tantos absurdos, dar um golpe no dia seguinte à posse; depois de defender a tortura e torturar a história para dizer que a ditadura não foi ditadura; depois de lamentar os 30 mil que a ditadura não matou; o mitômano virou mito.

Sim, vale o chavão: a culpa é da imprensa! Não só, mas também é da imprensa. Mas autocrítica no olho dos outros, é refresco. Este será, aqui entre nós, jornalistas, um debate eternamente inconcluso.
Sim, parte da culpa é da imprensa mesmo. Mas no nosso pedaço é possível criticar o crítico e denunciar o denunciante. Mas quem fiscaliza o fiscal? Quem julga o juiz? Quem prende a polícia?

Do Vale do Javari a Foz do Iguaçu, sirenes ensurdecedoras alertam para um Brumadinho de sangue prestes a romper a qualquer momento.

Talvez seja impossível saber quantas armas legais e ilegais havia no país até 31 de dezembro de 2018. Mas de 1 de janeiro de 2019 até hoje já nos aproximamos de 500 mil armas compradas legalmente com o estímulo direto do presidente e incentivos do seu governo.

Não, senhoras e senhores, as instituições não estão funcionando. Togados e fardados fora de suas respectivas casinhas, o baixo clero assumindo-se baixo meretrício com a orgia orçamento secreto transmitida em tempo real, faltando só o presidente da Câmara mandar o STF tomar satisfações no TCU. E o distinto Parquet, complacente com traquinagens intestinas de uns seus, capturar bilhões para financiar veleidades e vaidades de procuradores.

Conseguiram transformar Pindorama num brazil de ponta a cabeça.
A democracia se restabelecerá ou, se preciso for, se reinventará de alguma maneira. Mais dia, menos dia, com mais ou menos sangue derramado. Mas hoje, neste preciso momento em que você lê este textão, há um Brumadinho de sangue prestes a romper e a contenção da tragédia tantas vezes anunciada tem diferentes camadas de responsabilidades. A maior delas pesa sobre 11 pessoas investidas em cargos vitalícios e com prerrogativas que ninguém mais tem. Num outro nível, competência constitucional e prerrogativas estão concentradas numa única pessoa, o procurador-geral da República, o baiano Augusto Aras.

A atual composição do STF tem a responsabilidade e a oportunidade histórica de limpar a mancha de pusilânime inscrita em sua história pela cumplicidade com o AI-2. Sobre a cabeça de Aras pedula, como espada de Dâmocles, a tradição de baianos como Ruy Barbosa, arquiteto do Estado republicano atualmente em demolição, com STF e tudo.

E a obrigação de fazer jus ao sangue de quem tombou na resistência democrática, entre outras coisas, para que o Ministério Público e quem o chefia, tenha os poderes que tem hoje.

Há um Brumadinho de sangue prestes a romper. Foz do Iguaçu ainda não foi a tragédia, foi só mais um anúncio.
Com tiranos não combinam brasileiros corações.

*Ernesto Marques é jornalista e radialista