Aurélio Schommer

 aurelioEscritores desejavam parecer músicos, que os limites das palavras fossem estendidos a distâncias tais que pudessem alcançar os ritmos e harmonias da suprema arte dos sons. Para tal nobre fim, sentiam-se limitados menos pelas palavras do que pela inevitável dissonância das ideias.

Pobres autores, desconsolados por tal incapacidade, tal inferioridade, agonisticamente seguem tentando vencê-la. Alcançarão alguma harmonia, algum ritmo digno de nota entre tantas notas dissonantes? Bem, a programação da Flica 2015 foi pensada para esse nobre fim, sem ilusões, pois as marcas das dissonâncias também são caras a essa festa literária, sempre o foram, agora mais.

Há ritmo, ditado pelo homenageado, prosador exímio em espichar o alcance das palavras às alturas, jornalista atento às dissonâncias próprias da verdade. Antônio Torres, o imortal brasileiro, orgulhosamente baiano, cosmopolita por vocação de berço e senso estético adquirido em longa e admirável trajetória. Na mesa de abertura, estará ao lado de um jornalista virtuose na captação do excruciante nos fatos, Igor Gielow, quanto ritmo na narrativa de Ariana, tragédias e redenções entrelaçadas.

Nos mitos, a representação plástica obtida do mosaico de palavras de resistência e fantasia, os “signos da cultura”, expressão “não sei que” da filosofia vertida em prosa afiada, para fins de narrativa histórica ou fantástica, mais cedo de Cacau Nascimento, signo da terra cachoeirana, e de Tâmis Parron, garimpeiro dos sinais e simbolismos da escravidão; mais tarde, já no sábado, André Vianco e Ana Beatriz Brandão, virtuoses do imaginário estendido, dos mitos “não sei nada”, mas se nada sei tudo posso criar.

Professar no sentido de “tomar o hábito”, vestir-se de prosador, no dia do professor (15) é ofício para os devotos das palavras, tão devotos quanto reconhecidos como tais. Num dia só Verônica Stiger, João Paulo Cuenca, Lima Trindade e Martha Medeiros. Professemos, no sentido de “fazer uso público de”, esses encontros devocionais, em duplo sentido, devotos eles do professar, devotos à mancheia na plateia.

Do lirismo dos sentimentos ao lirismo da guerra, do choque entre ressentidos irreconciliáveis, a sexta-feira vai de Clarissa Macedo e Rita Santana, a declamar em prosa falada ou poesia escrita na tradicional mesa de poesia by Flica, a Kamila Shamsie e Rodrigo Gurgel, dois prosadores que preferem o romance povoado de sentimentos aos piores sentimentos, mas não fogem da arena do argumento reto, na guerra entre Islã x Ocidente, ressentimentos de treze séculos ora agudizados, em mais uma mesa tradicional by Flica: choque de opostos.

Entremeando a sexta de opostos e harmônicos, a homenagem by Flica, que já celebrou de forma original Nelson Rodrigues e Jorge Amado (em 2012), ao exímio retratista baiano dos conflitos da saga grapiúna, uma das mais fantásticas sagas de todos os tempos, Adonias Filho, com especialistas (Carlos Ribeiro, Silmara Oliveira, Adonias Neto) na obra do imortalíssimo itajuipense, da terra da guerra do Sequeiro do Espinho, que faz parecer os atuais conflitos étnicos das periferias das capitais europeias coisa de gente mimada.

O sábado da Flica já era uma maratona: quatro mesas. Agora, são cinco, maratona pouca é bobagem. O fim dela já casamos no início deste texto: o encontro inédito da revelação Ana Beatriz com o experiente Vianco, de pai para filha? Veremos. O dia começa mesmo com Hansen Bahia, homem do mundo e de Cachoeira, um dos tantos a descobrir que em Cachoeira reside o mundo. Apresentam Hansen xilogravurasliteraturas Rubem Grillo, Antônio Costella e Evandro Sybine.

O Estado, esse monstro que nossa imaginação não só criou como implantou, se quer benfazejo. Benfazejo? Mariana Trigo acha que sim; Bruno Garschagen, que não. Ah, sim, eles acabam invertendo as posições, como Portugal e Brasil tantas vezes inverteram na história multissecular dos diálogos lusófonos. Em seguida, diálogos africanos para dizer das pontes entre Estado e globalismos étnicos, com Helon Habila, nigeriano que fala de perto aos americanos, e José Carlos Limeira, a avaliar as interações entre etnicidades brasileiras, africanas e americanas.

Retomando o tema da música, é a vez de John Philip Sousa. Não, o compositor de marchas nascido em Washington e morto em 1932, não estará na Flica. Mas é no seu ritmo, dissonâncias, instrumentos, harmonias, tudo tão vasto, com tantas influências, que se apresentam as americanas Sapphire e Meg Cabot, ao lado das brasileiras Lívia Natália e Paula Pimenta, tradição Flica do encontro dessas duas Américas a disputar mitos de criação (evocando Pocahontas e Caramuru, tema da edição 2011).

Sapphire, além de dramas de adolescentes abandonadas por qualquer sorte (quem não leu “Preciosa”?) e questões de gênero, estabelece com Lívia Natália uma das tantas pontes cachoeiranas afro-baianas-americanas, sem perder de vista a eleição metropolitana de 2016. Meg Cabot talvez tenha algo a dizer sobre isso também, mas Paula Pimenta há de chamá-la, para fechar a Flica, já no domingo, com o tema do amor, esse “não sei que” indefinido que faz os escritores alcançarem as alturas da música, ritmo, harmonia, em meio a dissonâncias sem fim, tudo muito by Flica.

 

(*)Aurélio Schommer é escritor, crítico literário, titular  do Conselho Estadual de Cultura da Bahia curador da Flica,