Paloma Amado

 

Que notícia tão triste a deste sábado. Morreu Luís Fernando Veríssimo. Como tantos admiradores, fiquei desconsolada. Na verdade, me sinto mais do que uma simples admiradora, não tendo convivido com Lucia e Luís Fernando como desejaria, a imensa amizade de nossos pais nos unia de uma maneira quase familiar.

 

Papai e Érico foram amigos desde a juventude. Entre a Bahia, o Rio, a Europa do exílio e o Rio Grande do Sul não existia distância que o correio não atravessasse com a rapidez necessária para que os amigos soubessem de casamentos e nascimentos de filhos, conversassem sobre o fazer literário de ambos e dos de sua geração, se juntassem para combater as injustiças e as ditaduras (tantas) que viveram. Graças à dupla de escritores não foi concretizada a censura aos livros quase levada a cabo pelos militares de 64.

 

Hoje passei meu dia lendo as cartas trocadas por papai e Érico por mais de 50 anos. Foi um dia especial na minha vida, onde pude encontrar Luís Fernando, Lucia, e Fernanda, Clarissa como personagens de cartas de puro amor. Foi difícil respirar fundo e parar para escrever esta crônica, pois a emoção era intensa e quando pensava me sentar na frente do computador, a vontade era de fechar os olhos e sonhar. Assim fiz. Como escrever o que eu sinto? O melhor é seguir as cartas — que em breve virarão livro — e contar o que os missivistas falavam de Luís Fernando, o Joãozinho.

 

Joãozinho? Pois! Uma carta de 1936 desvenda essa charada. Papai foi visitar o recém-nascido, esteve com o menino, olhou bem sua carinha e decretou: “O Luís Fernando, Érico, tem cara de João, você não acha?” A partir daí, quando falavam do menino, o tratavam por Joãozinho. Quando, dez anos depois, nasceu meu irmão João Jorge, passaram a dizer: seu Joãozinho, meu Joãozinho… Como posso não me sentir da família?

 

Numa carta anterior, de 35, papai dava notícias de minha irmã Lila. ” Eulalia – Engorda e ri. Ri que parece meu pai (um sujeito risonho e gordo). Herdou o nariz chato do avô e a risada.” Lila se chamava Eulália Dalila Jorge, coitadinha, mas tinha um lindo apelido e se parecia com nosso avô João Amado. O João estava presente na vida de meu pai: era a cara de sua primeira filha, foi o nome de seu primeiro filho, e assim nomeou Luiz Fernado, filho de seu grande amigo. Preciso dizer que reler este trecho de carta me deixou muito emocionada. Papai sofria muito por sua morte pré-matura por Lupus, aos 15 anos, pouco antes de meu nascimento. Saber que ela também era uma “João” me trouxe ainda mais para perto de Luís Fernando.

Em 1952, Erico escrevia para papai: “A Clarissa está com 17, uma morena viçosa.
E o Joãosinho está um boto de tão gordo e grande. É um sujeito muito decente, quietarrão e retraído, mas no fundo um grande piadista.”
O menino cresceu e começou a escrever. “O “Joãosinho” nos saiu um excelente cronista. Faz um sucesso danado na Zero Hora, jornal local. Na esperança de ver vocês qualquer dia, Mafalda e eu lhes mandamos um afetuoso abraço.” Érico dava conta ao amigo do escritor que se anunciava através das crônicas. Joãozinho já era um escritor.

 

“P. A. 5 de março de 1965
Meu caro Jorge: A Roseli me trouxe o seu bilhete. …

 

Nós aqui vamos. Sem um filho, sem um neto em casa. É muito duro. Luís Fernando, o “Joãosinho”, nos deu a primeira neta, Fernanda. Moram no Rio. Clarissa continua nos States e tem três filhos.”

 

Em 70, papai conta da gente para o amigo: ” Paloma ficou noiva de um filho de Odylo Costa, filho, Pedro de nome, estudante de arquitetura, meio literato e meio artista. … O meu João, noivo, de barbas e cabeleira, tem um pequeno emprego no Teatro Castro Alves e perde o pouco dinheiro que ali ganha montando peças infantis. Forma-se no fim do ano em sociologia

…. Esteve preso duas vezes e levou umas borrachadas, em conflito estudantil. É um ótimo rapaz. A Paloma, além de noiva ficou também universitária: foi aprovada no vestibular para psicologia. Estou, como vê, prestes a lhe alcançar na etapa dos netos. Prevejo que Zélia será uma avó capaz de estragar qualquer neto com os dengos.” Era uma conversa de família.

 

” Porto Alegre, 9 de junho de 1970
Velho Jorge:
Tenho aqui comigo sua carta de 18 de maio passado. A notícia mais importante que tenho a lhe dar é a do nascimento dum novo filho de “meu” Joãosinho, o Pedro — gordo e narigudo como o pai — e que anteontem, diante dum padre com ar e sotaque de colono alemão da Picada Café, renunciou a satanás e prometeu ser um bom católico — coisa de que duvido muito.”

Em um Post Scriptum, nesta mesma carta, o orgulho pelo filho escritor:

 

“P. S – Luís Fernando está escrevendo cada vez melhor. Saiu-nos o “Joãosinho” um notável humorista, por vezes sarcástico. De vez em quando escreve crônicas que não sei como aparecem. Mafalda sente frio no estômago quando lê certos artigos do filho, imaginando que ele vá ser chamado ao DOPS.”

 

O Joãosinho deles e o nosso lutavam bravamente contra a Ditadura Militar. Foram fudamentais para nossa sobrevivência nos piores momentos as charges, as histórias, os personagens criados por Luis Fernando.

 

“McLean, 9 de agosto de 1972
Queridos amigos Jorge e Zélia: Viva a Mariana! Grande notícia. Também temos uma Mariana de quatro anos, filha do Luís Fernando. Transmitam à Paloma e ao Pedro o nosso abraço de parabéns. Sou um avô alucinado. Mafalda é uma avó menos teatral, mas muito mais eficiente que eu, porque faz boas coisas para os netos, enquanto eu os desfruto dum ponto de vista meio turístico…

 

O Luís Fernando e a Lúcia estão ótimos. O rapaz está escrevendo cada vez melhor. Continua, porém, não falando. Diz que só sabe comunicarse escrevendo.”

 

Esta é a última carta, justamente quando Érico saúda a chegada de minha primogênita e explica a timidez do seu Joãzinho. Difícil continuar escrevendo, viver a intimidade dos Veríssimo tem sido um grande privilégio.
Lucia e Fernanda, queridas, e mais toda a famíia, meu beijo de irmã, tia e amiga que lhes quer um bem sem limites.

 

Bom domingo a todos.