mae de ernestoErnesto Marques 

 

 

 

E de repente eu me vi menino, quase a mesma cena que me apavorou aos meus 5 ou 6 anos, quando um amigo-primo-irmão perdeu a mãe no mesmo acidente que quase matou a mãe de um outro amigo-primo-irmão. A minha mãe cor-de-rosa choque, como eu a defini no primeiro trabalho escolar de Dia das Mães, quando ainda havia pré-primário, não estava no carro e, portanto, não corria qualquer risco. Mas eu morri de medo.

 

 

ernesto marquesO meu amigo-primo-irmão chorando “minha mãe não morreu” foi uma lembrança que ecoou daquela infância até nascer o trigésimo segundo dente. Enquanto crescíamos juntos, ver a falta que a mãe lhe fazia trazia nítido aquele eco choroso e aquilo dava um medo que chegava a doer.

 

É a dor que me devastou por uma semana. Quase meio século depois, o medo se confirma e a dor volta como certeza plácida. Medo de cinquentão, claro, sem temer a orfandade como um menino de 5.

 

Estávamos em despedidas. A cada turno no hospital, não podia transmitir outra coisa senão a saudade mais sublime e grata que meus olhos conseguissem dizer aos olhos dela. Gratidão pela concepção, pelo ventre, pelo peito, pelo colo, pela doçura sem fim e pelo amor visceralmente incondicional pelos filhos. Por todos os filhos. Os que pariu e os que acolheu.

 

Como fiz tantas vezes, recorri mais uma vez àquele colo, agora tentando fugir dos olhos dela e esconder lágrimas. A mão castigada por tantos acessos venosos não conseguiu repetir o cafuné com aqueles dedos, testemunhas digitais das mudanças na minha cabeça. “Seus cabelos estão ficando todos brancos!” disse, ainda na casa dos meus trinta e tantos. Não, mãe, eles não estão ficando, estão indo embora!

 

Ela não cansou de ser mãe, e ao ver medo em nossos olhos, reagiria como qualquer mãe diante de qualquer coisa que amedronte sua cria. O “alemão” tirou quase toda a memória acessível ao que lhe restava de consciência, mas não apagou os afetos. Guardava ainda razoável consciência da sua situação até o final, e saber-se razão de lágrimas também a afetaria. É a mesma mãe que me pariu, 54 anos atrás.

 

Como é natural acontecer, mesmo sem abrir mão da sua majestade, foi ficando cada vez mais nossa filha. Especialmente da filha que mais se converteu em mãe da nossa mãe, e do vice-caçula – “o Predileto”, como nós, ciumentos resolvidos o chamamos. Sem marra.

 

De tão mãe, dizia arrepender-se apenas de não ter parido 14, em vez dos 7 gerados. Tão mãe, que é a segunda mãe de ninhadas de sobrinhos e ainda teve lugar pra extras, sob suas asas. Tão mãe, que uma gaúcha radicada em nossa Ipirá, amizade forjada em boas receitas de bolos, longe de casa, pediu pra colocar uma foto na parede da nossa antiga sala de jantar, onde a nossa árvore genealógica ampliada em dezenas de molduras tomava uma parede.

 

Em linguagem de hoje, não tivemos escolha, senão compartilhar nossa mãe. O resultado, também em termos contemporâneos, é que quando a vida dela esteve em risco, os cuidados foram colaborativos.

 

Vivemos em trabalho de desparto por uma semana. Sim, desparto. A minha criança amadurecida confessa o medo de seguir adiante, pelo que representa a partida de quem me pariu. Sem negar a obviedade, mas dada a naturalidade vivida por aquela mulher linda de quase 92 anos, prefiro dizer que a minha mãe desnasceu. Estamos a sofrer, como é natural, as dores de parir uma mãe em memória.

 

Aquele pequenino coração onde couberam tantos afetos honrou sua bravura sertaneja ancestral. As vezes disparava, como se tentasse compensar a insuficiência crescente a cada batida. Cada vez mais esforço, cada vez menos resultado.

 

A medicina seguiu o limite da família: intervenção mínima para manter o equilíbrio possível e tirar qualquer expressão de dor. A vida seguiu o curso natural, e, consumado o desnascer daquela mulher parideira, um cordão se parte em sete umbigos. É a nossa herança semente.

 

Em cada rebento gerado, uma semente possibilidade. Agora eu e meus irmãos entramos no corredor da vida. Já não somos filhos, agora somos tios, pais e avós. E a melhor possiblidade herdada e transmitida por aquela mulher-girassol é desnascer, em vez de simplesmente morrer. É fazer a passagem entre girassóis indicando o caminho da luz. Nas pegadas dela e do nosso velho, que desnasceu em casa, também cercado de cuidados e dengos, o roteiro para merecer tanta fortuna.