Débora Spagnol

debora 2Ao contrário da maioria dos nossos institutos jurídicos que possuem como fonte o direito romano, a origem histórica do “bem de família” é recente e americana.

Após a independência da Inglaterra (em 1776), os Estados Unidos vivenciaram uma de suas fases mais promissoras. O rápido crescimento da agricultura, indústria e comércio atraiu vários bancos estrangeiros, fomentando as mais variadas operações bancárias – principalmente empréstimos de grande monta que se destinavam à construção de hospitais, escolas, estradas e fábricas. Em meio a tanta riqueza e prosperidade, os americanos esqueceram-se das naturais oscilações econômico-financeiras típicas do capitalismo e, na ilusão da manutenção perpétua do elevado nível de vida, endividaram-se cada vez mais. O alto endividamento e a emissão descontrolada de moeda trouxe uma das piores crises do mercado americano entre os anos de 1837-1839, que resultou em quebra de milhares de bancos e empresas e na falência de inúmeras famílias que não conseguiam honrar suas dívidas e que perdiam todos os seus bens, inclusive sua residência.

Muitas dessas famílias, vislumbrando um recomeço e a reconstrução de seus lares, voltaram os olhos para a recém-criada República do Texas, rica em minérios e terras férteis e que garantia, por lei, uma pequena propriedade para cada chefe de família ou solteiro para que nela cultivasse ou estabelecesse residência. Era a “Lei do Homestead” (home: casa, e stead: lugar), termo que significa “residência de família” e que originou o conceito de impenhorabilidade dos bens domésticos móveis e imóveis. De termo para instituto de direito, o “bem de família” espalhou-se por quase todo o país americano e permanece em vigor até os dias e hoje, nos Estados e nos demais países que o admitiram. (1)

Em nossa legislação, o instituto foi previsto pela primeira vez no Código Civil de 2016, no livro I – “Das Pessoas”. Em 1941, através do Decreto-Lei nº 3.200 a impenhorabilidade foi condicionada ao baixo valor do imóvel, restrição que se extinguiu pela Lei 6.742/79, que ampliou a restrição à penhora de imóveis de qualquer valor. Referida lei definiu ainda os procedimentos necessários para a instituição voluntária e extinção do bem de família. O instituto também foi tratado na Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015, arts. 260 a 265), Código de Processo Civil de 1973 (arts. 1218, VI) e Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXVI).

Em 1990 foi promulgada uma lei específica sobre o assunto (Lei nº 8.009), criando-se o instituto “Bem de Família Obrigatório” –  imposição do Estado e independe de vontade das partes.  Segundo essa lei, “bem de família” é o imóvel residencial de entidade familiar, que não pode ser penhorado para pagamento de qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo hipóteses previstas na própria lei. Se a entidade familiar possuir mais de um bem imóvel, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor e não o que a família escolher.

Com a ampliação do conceito de “entidade familiar” pela CF/88, a impenhorabilidade abrange também os imóveis que pertencem à família monoparental e conviventes em união estável (inclusive homossexual), irmãos que vivem sob o mesmo teto e até mesmo a pessoas solteiras, separadas ou viúvas. (2)

Já o Código Civil de 2002 instituiu o “Bem de Família Voluntário” e trata da matéria nos arts. 1711 a 1722.

Assim, por força de lei estão previstas no Brasil duas formas de bem de família: voluntário ou convencional (previsto no Código Civil) e que pode ser instituído pelos cônjuges, por entidade familiar ou por terceiro, mediante escritura pública ou testamento, limitado a um terço do patrimônio líquido de quem o estabelece. Visa proteger o ato de vontade da família; legal ou obrigatório (previsto pela Lei nº 8.009/90), instituído independentemente da vontade dos proprietários e sem muitas formalidades: não depende de escritura, nem de registro, bastando a demonstração de que o imóvel é sua residência permanente. Visa à proteção da família, concedendo-lhe o mínimo de dignidade.

A impenhorabilidade abrange também os bens móveis que guarnecem a residência, salvo exceções expressamente previstas em lei (obras de arte, veículos de transporte e adornos suntuosos) e estende-se ao imóvel locado (desde que o proprietário comprove que a renda auferida com a locação destina-se ao pagamento dos aluguéis do imóvel onde reside de forma permanente).

A impenhorabilidade do bem de família pode ser oponível em qualquer processo de qualquer natureza: execução trabalhista, civil, previdenciária ou fiscal.

Mas a lei prevê algumas exceções ao instituto, excluindo situações em que o imóvel da família poderá responder pelas dívidas.

São elas: por créditos de trabalhadores da própria residência e as respectivas contribuições previdenciárias; pelo titular do crédito decorrente de financiamento contraído para o fim de adquirir ou construir a própria residência; pelo credor de pensão alimentícia (mesmo que destinados à manutenção da condição socioeconômica ou do status do alimentando); para cobrança de dívidas tributárias relacionadas com o imóvel (impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições); para execução de hipoteca de contrato de mútuo em que o imóvel foi livremente ofertado como garantia real; para pagamento de indenização decorrente de ilícito penal cujo produto originou a aquisição do imóvel; por obrigação de fiança concedida em contrato de locação (acrescentado pelo art. 82 da Lei do Inquilinato).

A exceção à impenhorabilidade atinge também aquele imóvel do insolvente que, perseguido por dívida, adquire imóvel de maior valor e para ele transfere a moradia familiar, desfazendo-se ou não do antigo. Nesse caso, o juiz pode reconhecer fraude a execução, desconsiderar a proteção legal e fazer o imóvel responder pela dívida.

Se o imóvel familiar for rural e não se tratar de pequena propriedade rural, apenas a sede e seus bens móveis são considerados impenhoráveis, sendo que o restante da área pode ser penhorado.

 

REFERÊNCIAS

1 – FIGUEIREDO, Renata da Silva. Bem de família legal ou obrigatório – Lei 8.009/90. Disponível em:  http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8512/Bem-de-familia-legal-ou-obrigatorio-Lei-8009-90. Acesso em junho/2017.

2 – Súmula 364 do STJ: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.