Débora Spagnol

debora 2 O dinheiro está de tal forma enraizado ao nosso cotidiano e por vezes é tão banalizado que sequer nos damos conta do quanto esse assunto é complexo. Da escolha da profissão até a forma de poupança, do valor do tempo até as escolhas amorosas,  quase todos os aspectos de nossa vida restam sedimentados no poder financeiro.

Karl Marx, em sua famosa obra “Capital”, introduziu o conceito de “fetiche da mercadoria”, ou seja: as pessoas são coisas, às quais é atribuído um valor simbólico, sendo a conduta humana precificada numa espécie de liberdade sem princípios. Nosso valor humano transmuta-se em valor de mercado e quanto maior nosso preço, melhor. Somos limitados tão somente pela falta de dinheiro: é assim que o mercado funciona.

Simpatizo com os conceitos de Freud, que com maestria abordou sobre o significado do dinheiro em nossa vida emocional. Segundo o pai da psicanálise, no nosso inconsciente o dinheiro, a exemplo do pênis, possui qualidade “fálica”, isto é: ambos são representantes do poder. A eles atribuímos o poder de preencher, de completar, de remediar o que nos falta, além, logicamente, de comprar, consumir, seduzir e conquistar.

Assim, de acordo com cada experiência de vida, têm-se as seguintes relações com o dinheiro: a) sujo e destrutivo: inconscientemente o dinheiro provoca repulsa, nojo, culpa ou medo. Quem tem esse padrão pode receber dinheiro muito facilmente (herança, jogos de azar), mas nunca terão nenhum, porque sempre inconscientemente rejeitam a fortuna; b) algo valioso: o dinheiro passa a ser uma preocupação constante. Próprio de pessoas sovinas, controladoras e rígidas; c) símbolo de poder: pessoas que desenvolvem este padrão experimentam várias sensações (fascínio, desdém e competividade quanto tem dinheiro; e inveja, ganância, desprezo e ressentimento quanto não tem). Atrelam o sucesso pessoal à quantidade de dinheiro (e poder), ignorando outras qualidades; d) dinheiro como dádiva: encaram o dinheiro como algo sagrado, com sentimento de júbilo, gratidão e generosidade, capaz de gerar abundância a si mesmo e aos outros.

A relação dinheiro “versus” relacionamento já foi objeto de várias abordagens através desta coluna: alimentos, pensão a ex-cônjuges, danos morais, relações “sugar” são alguns dos exemplos de como a vida financeira está intimamente atrelada à vida emocional.

Recentemente porém surgiu um novo conceito: “estelionato sentimental”. Mas o que representa este termo ?

Oras, não é novidade que toda a relação (afetiva ou comercial) se estabelece com base na boa-fé e lealdade dos parceiros, sendo livre a forma de pactuação dos contratos. Porém, mesmo o contrato tácito (aquele que não possui documento escrito) faz lei entre as partes.

Quando uma das partes demonstra má-fé na condução de um contrato ou relação comercial, utilizando-se de artifício ou induz terceira pessoa a erro para, assim obter para si ou para outrem uma vantagem ilícita, comete um crime contra o patrimônio: o estelionato, previsto no art. 171, do Código Penal.

No campo dos relacionamentos, quando um dos parceiros age com má-fé e, de forma proposital, se utiliza do afeto alheio para obter vantagens pessoais, sua conduta pode caracterizar o que atualmente se denomina “ESTELIONATO SENTIMENTAL”.

O termo foi inicialmente utilizado por uma brasiliense que, apaixonada, deixou-se ludibriar pelo parceiro que, aproveitando-se da fase enamorada da mesma lhe prometia casamento enquanto requisitava (e era atendido) com vários empréstimos e depósitos em conta corrente, prometendo que seriam quitados assim que conseguisse a tão sonhada estabilidade financeira. Passados alguns meses, o namorado retomou o casamento com a ex-mulher, deixando a apaixonada provedora descrente no amor e no recebimento dos valores que havia desembolsado. Ela então ajuizou uma ação buscando o ressarcimento dos danos materiais (os empréstimos totalizaram R$ 101.537,71) e morais sofridos. Em sua defesa, o Réu alegou que o desembolso dos valores deviam ser considerados “mimos”, presentes doados espontaneamente e, como tal, não era de bom tom exigir a devolução ou ressarcimento. O Juiz de primeiro grau aceitou as alegações da autora, afirmando que embora a ajuda financeira no curso de uma relação não seja ILÍCITA (ou seja, não é contrária à lei), a questão posta nos autos na verdade configura abuso do direito de ajuda e desrespeito aos deveres decorrentes da boa-fé objetiva: lealdade e confiança. Assim, o requerido foi condenado em primeiro grau a ressarcir integralmente o valor dos empréstimos, tendo a decisão sido confirmada em grau de recurso. (1)

Também buscando ressarcimento de valores subtraídos por um golpista que se utilizava do aplicativo Tinder, 25 mulheres de cinco Estados e do DF criaram grupos via WhatsApp para, em conjunto, receber denúncias, rastrear e alertar os novos alvos do acusado. Seu método era muito simples: conhecia mulheres a quem se apresentava como o verdadeiro “príncipe encantado”: charmoso, educado, culto e louco para casar. Em pouco tempo, conquistava a confiança das vítimas e falava dos problemas financeiros, convencendo-as a emprestar dinheiro que seria devolvido em breve, sumindo em seguida. (2)

Oras, a troca de favores no bojo dos relacionamentos é natural e frequente, sendo natural supor que, como em qualquer relação interpessoal, os participantes tenham suas atitudes amparadas na boa-fé e nas obrigações recíprocas. Partindo-se dessa premissa, cabe indagar: a atitude demonstrada pelos parceiros amorosos que, aproveitando-se da boa fé do outro colhem para si benefícios financeiros é matéria penal ou apenas mais um caso de reparação civil ?

O crime de estelionato previsto no Código Penal possui as características próprias de obtenção de vantagem, prejuízo a outrem, e subtração de objeto sem que a vítima perceba ou, se perceber, não impede que ocorra. Em suma: a própria vítima disponibiliza, por acreditar na boa-fé do depositário, o objeto a ser subtraído. Tal disposição se dá através da entrega, da cessão ou da prestação patrimonial. Sempre há o binômio: vantagem ilícita e prejuízo alheio.

São raros os casos em nossos tribunais em que se enfrenta a matéria, mas é possível a condenação quando reconhecidas a autoria e materialidade do crime. No RS, houve a condenação de um estelionatário que se aproveitava de vítimas em quadro social de fragilidade no campo sentimental em decorrência de separação, viuvez ou outras tragédias pessoais. Sua pena alcançou inacreditáveis 43 anos de condenação. (3)

Quando se fala em “estelionato sentimental”, há que se destacar o uso de artifício, malícia, astúcia, resultando em verdadeira fraude intelectual, ou seja: a vítima é induzida ao erro, através de uma falsa percepção da realidade, mantendo-se nessa condição até que se alcance o objetivo desejado. Induzindo a vítima a acreditar que há recíproca de sentimentos, o aproveitador cativa-a pelos laços afetivos e conquista sua confiança, muitas vezes colocando-se como a parte frágil e dependente da relação. Sentindo-se envolvida, a vítima abandona a razão e decide com base no sentimentalismo, cedendo aos pedidos do “estelionatário”. Por isso se diz que há um “vício de consentimento”, eis que a pessoa enganada não possui noção perfeita do que está acontecendo. Muitas vezes, a vítima é induzida a acreditar que há a recíproca sentimental.

Contrariamente ao decidido pelo TJDF, compartilho do entendimento de que o “estelionato sentimental” prevê, além da obrigatoriedade de ressarcimento dos prejuízos materiais sofridos pela vítima, também a possibilidade de reparação de danos morais, quando demonstrados os atos vexatórios aos quais a mesma restou exposta publicamente ou diante da família. Relembrando que o valor da condenação dos danos morais é apurado tendo em conta duas questões: as condições da vítima (padecimento, circunstâncias do fato e consequências psicológicas de longa duração) e do ofensor (gravidade da conduta, desconsideração dos sentimentos do outro, força econômica do autor, punição e desestímulo ao réu).

Mas há entendimento contrários à condenação do “estelionatário sentimental”. Seus defensores pregam que o estelionato é crime de mão dupla: não seria responsável somente quem deu amor para receber dinheiro, mas quem dá dinheiro para receber amor também contribui para o “crime”, numa verdadeira culpa concorrente. (4)

Amor, afetividade, carinho e companheirismo não se exigem: se recebe ou não. Não há ilícito em se apaixonar, bem como não é crime encerrar um relacionamento, sendo, ao contrário, um exercício regular de direito. Também não o é aceitar presentes de quem se ama.

Mas compartilho do entendimento de que, se alguém maliciosamente se utiliza de forma sórdida da boa fé de outrem, violando os princípios da lealdade e confiança que permeiam os relacionamentos para obter vantagens ilícitas em benefício próprio, deve responder civilmente pelos prejuízos causados.

 

REFERÊNCIAS:

TOGNOLLI, Dora. Dinheiro e psicanálise. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062014000200009. Acesso em dezembro/2016.

1 – TJDF, 7ª Vara Cível de Brasília, Autos nº 0012574-32.2013.8.07.0001. Notícia completa no link: https://www.google.com.br/search?q=quem+nasce+em+brasilia+%C3%A9+&ie=utf-8&oe=utf-8&client=firefox-b&gfe_rd=cr&ei=jTlUWJOSGo_28Afj7auoDA#q=ex-namorado+ter%C3%A1+que+ressarcir+v%C3%ADtima+de+estelionato+sentimental. Acesso em dezembro/2016.

2 – Notícia completa no link: http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2016/06/21/vitimas-de-estelionato-sentimental-se-unem-pela-internet-contra-suspeito.htm. Acesso em dezembro/2016.

3 – TJRS – Agravo 7004825415-5.

4 – GOULART FERNANDES, Fernanda Sell de Souto. O dinheiro não socorre quem dorme … com outro. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-direito-nao-socorre-quem-dorme/. Acesso em dezembro/2016.