Joelson Ferreira

joelsonEssa foi a condição na qual eu, Joelson Ferreira de Oliveira, viajei a Portugal. Tratava-se de numa missão do Governo do Estado Bahia, organizado pela secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação, para conhecer o Parque Tecnológico de Óbidos e, ao mesmo tempo, participar do Festival de Chocolate, que acontece anualmente no Castelo Medieval.

Foi uma experiência incrível! Depois de 517 anos, um preto brasileiro miscigenado, misturado, vai ao País que colonizou o Brasil. Eu não era o único a visitar aquela terra, mas, eu sabia que estava ali na condição de homem que tem na sua trajetória as marcas e o sangue dos seus antepassados.

Eu tenho profundo conhecimento dos primeiros povos que habitaram este país, pois, eu sou um deles. O sangue deles corre nas minhas veias. Eu sei que quando os portugueses chegaram aqui, os povos originários já habitavam esta terra há mais de doze mil anos.

Esses povos tinham conhecimento profundo dessas terras. Em harmonia com a natureza, eles viviam no verdadeiro jardim do Éden. Eram povos lindos, munidos de conhecimentos e saberes científicos e tecnológicos extraordinários. Eles domesticaram uma rama altamente venenosa chamada mandioca. Possuíam conhecimento da navegação e eram excelentes pescadores artesanais, caçadores e extrativistas. Além disso, eram corajosos guerreiros.

A essas nações os portugueses trataram de apelidar de “índios”. De acordo com relatos e documentos históricos, aqui viviam mais de cinco milhões de povos originários. Ao chegar ao Brasil, em 1.500, os portugueses foram bem recebidos. Apesar da boa recepção, tempos depois, eles voltaram e invadiram nossas terras. Os portugueses cometeram um dos maiores genocídios da nossa história. Eles violentaram as índias. Eles aprisionaram e escravizaram o nosso povo. Eles implantaram uma guerra bacteriológica sem precedentes e quase exterminaram os povos originários. Com diferentes armas, os portugueses mataram os nossos povos.


Mas, os portugueses não agrediram e mataram só os povos que aqui viviam. Eles destruíram as nossas terras e roubaram as nossas riquezas. Da nossa natureza, eles, de forma irresponsável e avarenta, extraíram ouro, madeira e vários tipos de minérios, deixando a nossa mãe terra pobre e ferida. Agora, mais de cinco séculos passados, eu estava em Portugal convivendo com os descentes dos invasores da nossa terra e os assassinos da nossa gente.

Naquele contexto, eu me recordava que além do sangue dos povos originários, corre nas minhas veias o sangue de outro povo que também sofreu a escravização, o povo preto da mãe África. Os portugueses também invadiram e barbarizaram a África. Os invasores roubaram todas as riquezas daquele país. Eles cometeram um holocausto, um genocídio de mais de dez milhões de homens e mulheres.

 

Os sobreviventes foram colocados à força em um navio negreiro e mandados para o novo mundo. Da África, os navios saíam cheios de guerreiros aprisionados. Entretanto, mais da metade desses povos ficava no caminho traçado pelo mar. Eles eram assassinados de várias formas: por doenças (implantadas pelos próprios portugueses), por maus-tratos e covardia. À medida que o navio avançava, desenhava-se nas águas um caminho feito por corpos de homens, mulheres e crianças jogados ao oceano.

 

Diante desta história marcada por crimes e extermínios do nosso povo, como vocês acham que se sentia este homem que carrega todas essas marcas sobre seus ombros? O primeiro pensamento que me veio à cabeça e ecoou como voz não foi de revanchismo e nem de ódio. Senti-me no dever de representar os meus ancestrais.
Eu disse à nova geração portuguesa que seus antepassados tinham cometido crimes bárbaros contra o nosso povo. Expliquei que ela não tinha como apagar da história essas marcas, tampouco ela poderia pagar essa dívida. Por isso, toda a nação portuguesa tem uma grande dívida com as gerações do passado, do presente e do futuro.
Ciente dessa história, a primeira coisa que fiz foi cobrar a dívida histórica daquele país para com o nosso povo. No fundo da minha alma não acalentada, eu sentia as dores e as marcas da brutal violência portuguesa sobre os nossos povos. Eu me indignava pela invasão promovida por eles sobre a nossa terra. Eu carregava as dores e as marcas de todos os índios e de todo o povo preto que sofreu a escravidão.
Eu estava ali, de pé, vivendo todo esse dolorido filme histórico que se passava na minha cabeça e meu coração. Um coração partido pela dor e pela mágoa. Sentia o meu corpo banhado pelo sangue dos nossos povos. Dois sentimentos disputavam espaço dentro de mim: o desejo de fazer justiça e o de vingar o extermínio do nosso povo.
Mas, a consciência de que eu estava ali em uma missão do meu país e de que vivemos outros tempos fez com que eu contivesse todo o meu sofrimento e a minha dor. Diante de tudo isso, eu renovei os meus laços de pertencimento aos meus antepassados e jurei continuar a luta do meu povo. E, na qualidade de sem terra, índio e preto, voltei às terras brasileiras. Aqui, eu e tantos outros povos retomamos com determinação e coragem a luta pela terra e pelo território. Lutaremos para construir uma economia para além do capital. Retomaremos tudo que é nosso. Descolonizaremos o Brasil e toda a América.

 

Joelson Ferreira é líder do Assentamento Terra Vista/MST, em Arataca, Sul da Bahia