Débora Spagnol

debbieDurante longos anos do século XX a expressão “abandono do lar” foi utilizada no direito brasileiro como coerção às mulheres, na tentativa de evitar que as mesmas deixassem o lar conjugal sob pena de prejuízo patrimonial e familiar, obrigando-as assim a suportar situações muitas vezes degradantes e adversas.

A evolução da sociedade sempre foi acompanhada de perto pelo Direito e, mais especificamente, pelo ramo Direito de Família. Assim, tornou-se necessária a atualização do conceito do “abandono do lar”, de forma a abarcar não somente a  relação exclusiva com o uso do bem (posse), mas também a tutela e proteção da família.

Hoje compreende-se por “abandono do lar” para fins de usucapião familiar, o abandono voluntário (pelo homem ou mulher) da posse do imóvel dito conjugal, somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou da união estável. O conceito encontra-se pacificado através da atualização do Enunciado nº 499 que regula o artigo 1.240-A do Código Civil e passou a ser considerado paradigma para decisões judiciais onde se busca a decretação da propriedade pela Usucapião.

Como resultado, o cônjuge ou companheiro que exercer a posse direta com exclusividade, por dois anos ininterruptos, sobre o imóvel do qual dividia a propriedade com ex-conjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquire o domínio integral da propriedade, constituindo-se então o USUCAPIÃO FAMILIAR, USUCAPIÃO DE EX-CONJUGE ou USUCAPIÃO PRÓ-FAMÍLIA.

A Usucapião na forma que tradicionalmente conhecemos (aquisição de propriedade do imóvel pela posse) surgiu no Direito Romano e tinha como principal objetivo regularizar a documentação patrimonial no momento da aquisição de acordo com a legislação que vigorava na época. (1)

Mas o passar dos anos não modificou uma característica essencial ao instituto: sem a posse “mansa e pacífica, sem oposição”, não há usucapião.

A Usucapião familiar é instituto recente: foi criado através da Lei 12.424/11, que inseriu o art. 1.240-A ao Código Civil e busca justamente a valorização da proteção da moradia, um dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal.

O abandono do lar deverá ser feito de forma espontânea, com a separação de fato do casal ou separação de corpos, não sendo considerada para efeitos de usucapião familiar a retirada do cônjuge via medida cautelar (pela Lei Maria da Penha, por exemplo).

Além disso, o “abandono do lar”, deve ser agregado não apenas com a retirada do lar conjugal, mas com o abandono da própria tutela da família, o não atendimento das responsabilidades familiares e parentais, o desassistir que venha a trazer dificuldades materiais e afetivas para quem restou abandonado. São exemplos: deixar de contribuir para as despesas do lar, não prestar alimentos, romper os  vínculos afetivos com os familiares.

Para que seja reconhecida a propriedade via Usucapião Familiar, porém, não basta o abandono pelo ex-cônjuge, é necessário que sejam cumpridos alguns requisitos: posse “ad usucapionem” no  prazo de 02 (dois) anos ininterruptos sem oposição; o imóvel deve ser urbano e possuir no máximo 250m²; deve ser utilizado como moradia do núcleo  familiar; o imóvel deve ter sido de propriedade comum do ex-casal; a parte que pretende usucapir não pode ser proprietária de outros imóveis.

A propriedade pela Usucapião Familiar aplica-se tanto a casos de união estável como casamento (independentemente do regime de bens), de relações heterossexuais ou homossexuais.

A ação poderá ser proposta  na Vara de Família, via procedimento comum, podendo ser cumulada em ação de divórcio ou dissolução de união estável, devidamente instruído com a certidão de matricula do imóvel, certidão negativa de imóveis de todos os cartórios existentes no município e prova do abandono do lar – geralmente por testemunhas.

 

_______________________________________________________________________

1 – É importante destacar as diferenças entre “posse” e “propriedade”. Simpatizo com a definição de Ihering, citada por Farias & Rosenvald: ”A posse seria o poder de fato e a propriedade, o poder de direito sobre a coisa […] a posse é porta que conduziria à propriedade, um meio que conduz a fim. A propriedade sem a posse seria um tesouro sem a chave, uma árvore frutífera sem a escada que atingisse os frutos, pois a propriedade sem a posse restaria paralisada.” FARIAS & ROSENVALD (2010, p. 29).

Referência:

1 – OLIVEIRA, Dielly Karillena Lima de e PEREIRA, Deborah Marques. Usucapião familiar: uma garantia ao direito à moradia. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14645. Acesso em dezembro/2016.