Quando a gente acha que não consegue se chocar com mais nada nesse país de dólares na cueca, policiais que deveriam proteger o cidadão e matam crianças indefesas, dinheiro da saúde e da educação desviado para vala insaciável da corrupção e quetais; eis que a televisão exibe cenas que chocam pela falta de escrúpulo e pela ausência total desse que é mais nobre dos sentimentos: a solidariedade.
As imagens de “voluntários” e de soldados do Exército desviando parte dos donativos enviados de todas as partes do Brasil para as vítimas das inundações que devastaram o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, beiram o escárnio.
Voluntários foram flagrados colocando quantidades enormes de alimentos em carros particulares e saindo tranquilamente dos centros de triagem de donativos. Um deles tentou negar o inegável, mas diante da imagem em que aparecia desviando alimentos, disse que era para doar à sua mãe, recém-saída de uma cirurgia. A pobre coitada deve se envergonhar de um filho que usa seu nome de maneira de tão infame.
Uma mulher, em meio a sorrisos, chegou a comentar com outra que um par de tênis que ela pretendia levar para o filho estava soltando o solado. E, diante de tamanha oferta, optou por um modelo mais novo. Como se estivesse numa loja, fazendo a mais inocente das compras.
Situação não menos revoltante foi gerada por soldados do Exército, destacados para atuar na seleção dos donativos para encaminhamento aos flagelados. Depois de se deliciarem com as opções de tênis, camisetas, blusas e calças à disposição e fazerem brincadeiras sobre quem seria o “proprietário” de determinado produto, saíram com as mochilas cheias, como se acabassem de dividir um butim de guerra.
Como bem disse o comando do Exército, são casos isolados e os soldados serão exemplarmente punidos. É bom que seja assim, porque se aquilo que se viu em Santa Catarina for regra, Deus nos livre de uma guerra. Ou de uma catástrofe de proporções nacionais, tamanha a falta de preparo desses rapazes, que deveriam ser treinados para ajudar as pessoas num momento de infortúnio e não para rapiná-las.
O desvio dos donativos em Santa Catarina causa asco, mas não pode ser tratado como algo isolado, atípico.
Ele está inserido num contexto em que, muito por conta da roubalheira em alta escala, respaldado pela mais sublime impunidade, cria a sensação de que não há nada demais em cometer pequenos deslizes.
Seria mais ou menos como abraçar o senso comum de que se nossos políticos roubam sem a menor cerimônia e nada acontece com eles; pequenos gestos ilegais como sonegar impostos, fazer “gato” de água e energia elétrica, subornar o guarda de trânsito ou o fiscal de obras são pecadilhos menores.
Assim, torna-se natural para algumas pessoas se alistarem como voluntárias com o único objetivo de desviar roupas e alimentos, sem levar em conta que eles vão fazer falta -e muita- para os desafortunados que perderam tudo nas inundações e estão passando fome e frio.

Alguns quilos de alimentos, uns tênis e umas blusas usadas desviados podem parecer pouco ou nada na corrupção em larga escala, que estamos acostumados a presenciar diariamente.
Mas representam muito na medida em que demonstra que, contagiados por essa noção equivocada de que tudo é permitido e tolerado, até os mais simplórios dos cidadãos não se furtam de desviar donativos como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. E que apenas deram o azar de serem flagrados por uma indiscreta câmera de televisão.
Decididamente, não é esse o Brasil que queremos.
Talvez seja o Brasil que estamos construindo. O que é pior, muito pior.