:: ‘José Eduardo Agualusa’
“Antifascistas: Contos, Crônicas e Poemas de Resistência”: a literatura combate o fascismo
Publicado pela Editora Mondrongo, de Itabuna, o livro Antifascistas reúne algumas das mais importantes vozes da literatura de língua portuguesa no mundo, como Luiz Fernando Veríssimo, Pilar del Río, José Eduardo Agualusa, Valter Hugo Mãe, Maria Valéria Rezende e outros autores que escreveram em torno do tema da resistência.
A obra tinha lançamento agendado na Primavera Literária, em Paris, e em Portugal, com apoio da Fundação José Saramago, depois São Paulo, Rio, Salvador, Recife e João Pessoa, mas tudo teve que ser adiado devido à pandemia do Coronavírus. Foi quando Leonardo Valente e Carol Proner, organizadores da antologia, decidiram realizar não apenas um, mas oito eventos virtuais, envolvendo todos os escritores participantes.
A cada quinta-feira, sempre às 16h, no canal do YouTube TV247, um grupo debate as temáticas abordadas no livro. Nesta quinta (28) o Nordeste está na pauta com a presença de Urariano Mota, Maria Valéria Rezende, Hildeberto Barbosa Filho, além de Gustavo Felicíssimo, que além de editora da Mondrongo, é também participante da antologia com a crônica “O valor das coisas”, além de Leonardo Valente e Regina Zappa que mediam os debates.
O triste fim de Jair Messias Bolsonaro
José Eduardo Agualusa
Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.
Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olimpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.
Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.
— Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
— Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.
Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
— Porra! Quem é você?
— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.
— Você não é real!
— Não?
— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.
— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
— Vou levar você para a floresta.
— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reacção alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:
— Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!
— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.
Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.
O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.
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Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal.
Agualusa: “impeachment foi o triunfo da estupidez”
(Opera Mundi) – As confusões da política brasileira têm deixado assustados não só os próprios brasileiros, mas também aqueles que estão acostumados a visitar o país. O escritor angolano José Eduardo Agualusa aporta por aqui ao menos uma vez por ano e acompanha tudo o que acontece por meio de seus amigos. Morou no Brasil por quatro anos, dois em Pernambuco e dois no Rio de Janeiro. Quando voltou para Portugal, onde reside atualmente, levou consigo carinho e preocupação com o país, como se fosse nativo.
Sentado em uma cadeira pouco confortável e sedento por água de coco, Agualusa mostrou-se perplexo com a situação atual do Brasil. A visita a São Paulo foi breve. Apenas cinco horas antes de pegar um voo para o sul, onde participou da terceira edição da Feira Literária Internacional de Maringá. Em maio, assinou um manifesto em Portugal contra o golpe no Brasil, assim como os escritores Valter Hugo Mãe, Pilar del Rio, Gonçalo M. Tavares, entre e outros.
Agualusa acha assustador como o Brasil, que avançou tanto nos governos Lula e Dilma Rousseff, abriu tamanho espaço para o conservadorismo. O discurso do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e o coro que o acompanha é o exemplo mais claro disso. “Bolsonaro não deve ler ficção, porque para ler ficção deve-se ter empatia”, exclamou o luso-angolano-brasileiro, dizendo já ter falado isso para uma amiga.
`FERAS DE LUGAR NENHUM´, UM LIVRO ARREBATADOR
Atenção: este romance vai arrasta-lo a partir da primeira linha para um mundo que talvez você preferisse ignorar. É provável que você já não seja a mesma pessoa quando terminar de ler a ultima frase: ´sou todas essas coisas, sou todas essas coisas, mas já tive uma mãe, e ela me amava´
O texto de apresentação do escritor angolano José Eduardo Agualusa diz tudo. “Feras de lugar nenhum”, do escritor Uzodinma Iwela, norteamericano de origem nigeriana, é um livro arrebatador.
A narrativa do menino Agu, tirado da infância tranquila e lançado nos horrores de uma guerra tribal nos confins da África, nos remete à várias guerras, tribais ou não, em que crianças e jovens se tornam soldados descartáveis, brutais e ao mesmo tempo infantis.
Agu, poderia ser, porque não? o menino da periferia violenta de Itabuna e Ilhéus, na outrora rica região cacaueira da Bahia, onde a droga é a matiz da guerra e da morte.
Onde mães que amam choram por filhos que morrem.
“Feras de lugar nenhum”, editado no Brasil pela Nova Fronteira, é um daqueles raros livros em que as páginas gritam. Leitura imperdível.
JAVIER MORO E UZODINMA IWEALA, UM ENCONTRO ESPECIAL NA FLICA 2012
A Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), encerrada neste domingo, produziu um encontro especial. Durante café da manhã no Mosteiro do Carmo, transformado em hotel, o espanhol Javier Moro e o norteamericano de origem nigeriana Uzodinma Iweala tiveram uma conversa em que a literatura foi o assunto principal.
Moro é autor de romances como ”Sari Vermelho”, “Paixão na India” e “O império é você”, uma narrativa polêmica sobre a vida de Dom Pedro I. Iweala escreveu “Ferras de Lugar Nenhum” e um livro sobre a devastação causada pela Aids na África, ainda sem tradução no Brasil.
Os dois escritores também falaram sobre desigualdades sociais no planeta. Moro e Iweala fazem parte daquele grupo de escritores que na definição perfeita do angolano José Eduardo Agualusa, também presente à Flica 2012, sonham com um mundo em que, em vez de barreiras, os guardas de fronteira construam pontes.
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