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Estupro, aborto e gravidez na adolescência: é preciso falar disso
Marcos Bandeira Júnior
Nos últimos dias, o Brasil ficou estarrecido com duas notícias chocantes: uma juíza catarinense impediu que uma menina de 11 anos fizesse um aborto, um direito concedido a toda grávida vítima de estupro. Felizmente, depois da repercussão do caso, a criança conseguiu fazer o aborto. No domingo, a atriz Klara Castanho, de 21 anos, teve que vir a público expor suas dores, depois de ser enxovalhada por dois abutres – uma apresentadora e um “jornalista”– que ganham a vida espalhando fofocas de celebridades. Klara foi estuprada, só percebeu que estava grávida dias antes do parto (já que não engordou e continuou a menstruar) e entregou o bebê para a adoção, prática legal e à qual pode recorrer qualquer mulher, de qualquer idade, vítima ou não de estupro, que não queira ficar com o filho.
Estupro, gravidez na adolescência e aborto são temas delicados, mas que precisam ser discutidos por essa sociedade machista, que teima em não exercitar o humanismo e a empatia pelas mulheres vítimas de violência. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2021, uma mulher foi estuprada, a cada 10 minutos em média, no Brasil. Dos 56,1 mil casos, mais de 35,7 mil eram crianças e adolescentes de até 13 anos. A esmagadora maioria, meninas: 85,5% das vítimas. 40% dos crimes foram cometidos por pais ou padrastos; 37% por primos, irmãos ou tios e quase 9% por avós.
Como resultado desse cenário de horror, mais de 21.600 meninas ficaram grávidas antes dos 14 anos de idade. E, a cada 30 minutos, uma menina de 10 a 14 anos torna-se mãe! Quantas delas, por falta de informação e apoio familiar e jurídico, foram obrigadas a se tornar mães, numa fase da vida em que tinham de estar estudando, brincando, pensando em planejar um futuro melhor? Segundo especialistas, a desinformação sobre sexualidade e sobre direitos sexuais e reprodutivos é o principal motivo para que a adolescente fique grávida: 7, de cada 10 adolescentes grávidas, dizem que engravidaram “sem querer”.
Os riscos à saúde da mãe e do bebê vão de transtornos psiquiátricos à disputa entre mãe e feto por nutrientes disponíveis no corpo da gestante e, em muitos casos, necessidade de UTI neonatal para o recém-nascido. Há também o aspecto social: a adolescente tem, por exemplo, sua vida escolar interrompida e, no caso de famílias de baixa renda (que abrigam a maioria das adolescentes grávidas), a tendência é que a pobreza aumente. É uma espécie de círculo vicioso da miséria, pois nem sempre a adolescente tem condições financeiras para cuidar da criança.
Mulheres negras e pobres são mais vulneráveis ao aborto com risco
Uma série de pesquisas realizadas no Brasil mostra que as desigualdades social e racial típicas do país desde a época colonial marcam também a prática do aborto. “As características mais comuns das mulheres que fazem o primeiro aborto é a idade até 19 anos, a cor negra e com filhos”, descreve em artigo científico inédito a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), e o sociólogo Marcelo Medeiros, também da UnB e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O texto, relativo a uma etapa da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), será publicado em julho na Revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Pública (Abrasco). A edição traz um dossiê sobre o aborto no Brasil, produzido com pesquisas feitas para o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Diniz e Medeiros coordenaram, entre agosto de 2010 e fevereiro de 2011, levantamento com 122 mulheres entre 19 e 39 anos residentes em Belém, Brasília, Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em Salvador.
Segundo os autores, a diferenciação sociorracial é percebida até no acompanhamento durante o procedimento médico. “As mulheres negras relatam menos a presença dos companheiros do que as mulheres brancas”, registram os pesquisadores. “Dez mulheres informaram ter abortado sozinhas e sem auxílio, quase todas eram negras, com baixa escolaridade [ensino fundamental] e quatro delas mais jovens que 21 anos”.
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