Débora Spagnol

Debora SpagnolMaquiavel já disse, no livro “O Príncipe” – uma das teorias políticas mais elaboradas pelo pensamento humano, pois ensina como chegar e se manter no poder – que “há duas maneiras de lutar: com a força ou com as leis”. (1)

Atualmente, a segunda forma citada pelo autor torna-se o termo a ditar o significado da palavra “lawfare”: a utilização da lei e dos procedimentos legais pelos agentes do sistema de justiça para perseguir quem seja declarado inimigo. O “lawfare”, na prática, se torna o oposto da busca pela justiça, tornando-se mais um “justiçamento” pelo próprio judiciário.

Surgida da junção das palavras “law” – lei e “warfare”  – conflito armado, “lawfare” atualmente significa o uso estratégico de processos judiciais com a finalidade de criar impedimentos a adversários políticos. A lei, nesses casos, é utilizada como instrumento de guerra e destruição do outro (do inimigo), sem respeito aos procedimentos legais e aos direitos do indivíduo que se pretende “eliminar”. O processo judicial, para que tenha efeito, é planejado e tramita sob a aparência de legalidade, contando com a ajuda da mídia e dos agentes políticos/sociais que buscam “aniquilar” referido opositor ao objetivo maior. (2)

lawfareA expressão foi inicialmente utilizada por um coronel da Força Aérea americana em 2001, como estratégia do mau uso da lei para alcançar um objetivo operacional como alternativa aos meios militares tradicionais. A origem do termo, portanto, não significou o uso do direito como arma de guerra, o que se deu com o tempo. No passado, os adversários políticos eram eliminados pela violência física; atualmente se usa da violência e do poder da lei para produzir resultados políticos, afastando-se o adversário pelo uso abusivo do sistema jurídico em substituição aos processos eleitorais constitucionalmente vigentes. O direito, assim, se torna arma mais poderosa do que a guerra, seja por conta do aumento do número de leis e tribunais, pela criação de ONG´s dedicadas aos conflitos armados ou pela revolução na tecnologia da informação.

São características do “lawfare”: a utilização de acusações frívolas, ou seja, acusações e instaurações de processos judiciais sem provas, sem materialidade; abuso de direito com o intuito de prejudicar a reputação de um adversário político; tentativa de influenciar a opinião pública com utilização da lei para obter publicidade negativa e bloqueio das tentativas dos adversários para fazer uso das leis e procedimentos legais para defender seus direitos. Associado a isso, o uso da imprensa trata o assunto como se ele estivesse respaldado por provas (que não existem ou são frágeis demais), promovendo o ódio contra os opositores políticos e a desilusão popular. (3)

Segundo alguns doutrinadores, existem dois tipos de “Lawfare”: o instrumental, que é o uso de instrumentos legais (nacionais ou internacionais) para fins políticos; e o “compliance-leverage disparaty”, concebido para obter ganho no campo de batalha dos processos dos adversários com base no Direito dos conflitos armados. Por questão objetiva, nesse texto trata-se tão somente do “Lawfare instrumental”, cujos exemplos são: a) criação de leis que permitam a redução de garantias no âmbito das persecuções penais (4); b) criação de leis com tipificação aberta que permita a adequação de condutas com finalidade coibir ações políticas tidas como criminosas ou que invertam o ônus probatório (5); c) judicialização de discussões antes restritas ao âmbito político (6); d) reinterpretação criativa de leis existentes reduzindo a importância dos direitos humanos e fundamentais; e e) utilização de persecuções criminais para atingir objetivos políticos.

No Brasil, com forte histórico de governos oligarcas, há fortes indícios de “Lawfare” na origem do próprio Ministério Público. O presidente Campos Sales (7), que governou o país entre 1898 e 1902, criou o “Pacto Coronelista”, que pregava o apoio do poder central às oligarquias estaduais e vice-versa, sendo o Judiciário servil às mesmas: havia um juiz federal por estado, sem vitaliciedade e removível. Isso facilitava a cooptação dos magistrados às causas do poder. Esses juízes eram responsáveis pelas questões eleitorais e interditavam as oligarquias estaduais quando debandavam para os partidos de oposição. Durante seu governo Campos Sales reestruturou o Ministério Público, determinando que os chefes institucionais estivessem vinculados ao Poder Executivo, que demitia quem não estivesse vinculado ao chefe do poder e perseguia os próprios membros que não estivessem a favor dos interesses oligárquicos.

Na política recente brasileira há casos claros de “Lawfare” praticados contra determinados políticos, no âmbito da “Operação Lava Jato” e com vistas à sua eliminação do jogo eleitoral, sendo possível constatar a reinterpretação de leis existentes visando à restrição de direitos humanos e fundamentais e a utilização da persecução criminal para atingimento de objetivos políticos.

Em um dos casos mais emblemáticos, atacado por juristas mundiais (8), há arbitrariedades de todos os tipos: da condução coercitiva desnecessária e ilegal (9);  escutas telefônicas a “grampos” de telefones dos advogados; denúncias por “power point” até condenação por “prática de atos indeterminados” com base numa teoria de domínio do fato alienígena e alterada na medida para a condenação do réu (10); celeridade extraordinária para o julgamento do recurso (11) e interrupção de férias de juiz não competente para impedir concessão de “habeas corpus” por desembargador (12). A hipótese de perseguição judicial ganhou reforço com a indicação (e aceitação) do Juiz de primeiro grau que condenou o candidato excluído das eleições para integrar o Ministério da Justiça do candidato vencedor do pleito (13). A notícia, claro, ganhou repercussão internacional, com contundentes críticas a todo o sistema judicial brasileiro (14).

O “Lawfare” no Brasil serve para tornar concreta a judicialização da política, tornando quase impossível distinguir o que é “direito” do que é “interesse político”. A judicialização normalmente se dá quando os tribunais são chamados a se pronunciar sobre questões de cunho político quando o Legislativo e o Executivo se mostraram falhos, insuficientes ou insatisfatórios. (15)

Elege-se um “inimigo” – aquele que se pretende tirar do cenário político, “exterminar” – e passa-se à exposição dos seus desmandos e desacertos praticados no exercício do poder. Com ampla exposição midiática, resulta um pré-julgamento e condenação por aqueles que não dominam os meandros das ciências jurídicas (a população), preparando-se assim o espírito popular (através do ódio) para a injusta condenação, que resultará na eliminação do candidato que fatalmente obteria a aprovação popular pelo sufrágio.

Ao aliar o uso político da lei e da estrutura judiciária à agenda panfletária midiática, o “lawfare político” se torna uma poderosa arma em desfavor da democracia. Seu uso sistemático no Brasil se confirma pela hegemonia editorial dos veículos de imprensa, que cotidianamente noticiam a persecução/condenação de figuras políticas relevantes, desde que essas ameacem o poder oligárquico nacional.

 

REFERÊNCIAS:

1 – Maquiavel, Nicolau. “O Príncipe, trad. de Antonio Cauccio-caporale, Editora L&PM Pocket: Porto Alegre, 2011. p.75. A revolução em ciência política operada por Maquiavel, relativamente ao pensamento político clássico, consiste em promover uma separação entre política e moral, visando exclusivamente à obtenção e manutenção do poder de Estado.

2 – Site “Brasil Escola”. “Lawfare”. Disponível em: <https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/atualidades/lawfare.htm>. Acesso em nov.2018

3 – Site Justificando. “Lawfare” representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política”. Disponível em: <http://www.justificando.com/2016/11/17/lawfare-representa-o-uso-indevido-dos-recursos-juridicos-para-fins-de-perseguicao-politica/>. Acesso em nov. 2018

4 – Exemplo: “As dez medidas contra a corrupção”. Site Ministério Público do Paraná. “Conheça as 10 medidas contra a corrupção”. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/pagina-6193.html>. Acesso em nov.2018

5 – Exemplo: definição de “organização criminosa”. Legislação Federal – Lei nº 12.850/2013.  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12850.htm>. Acesso em nov.2018

6 – Como ocorreu com o Projeto de Lei nº 4.850/2016, quando através de medida cautelar o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro questionou a validade do processo legislativo estabelecendo medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos. O Ministro Luiz Fux concedeu a liminar e determinou que o projeto retornasse do Senado à Câmara e fosse autuado como de “iniciativa popular”, já que continha a assinatura de mais de dois milhões de brasileiros. Projeto de Lei disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2080604>. Acesso em nov.2018

7 – Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Campos_Sales>. Acesso em nov. 2018

8 – Youtube. Canal 247. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VyC2KyAwLLk>; e  <https://youtu.be/EiY_lNio1-Q> . Acesso em nov.2018

9 – Recentemente a própria medida da condução coercitiva foi considerada, pelo STF, inconstitucional por violação da garantia constitucional do devido processo legal e ampla defesa, e do direito de permanecer calado. Texto completo no link:  <https://www.conjur.com.br/2018-jun-14/supremo-proibe-conducao-coercitiva-interrogatorios>. Acesso em nov.2018

10 – Site Justificando. “O Juiz e a construção dos fatos”. Disponível em:  <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/01/23/o-juiz-e-construcao-dos-fatos/>. Acesso em nov.2018

11 – O processo do ex-Presidente Lula passou à frente de mais de 237 recursos que aguardavam julgamento. Disponível em:   <http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/01/sistema-interno-do-trf-4-mostra-que-paulsen-acelerou-processo-de-lula>. Acesso em nov.2018

12 – Site Conjur. “Decisão de Moro contra liminar de soltura de Lula foi proferida durante suas férias”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jul-08/decisao-moro-soltura-lula-foi-proferida-durante-ferias>. Acesso em nov. 2018

13 – Canal UOL. Moro aceita convite e será ministro da justiça de Bolsonaro”. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/11/01/moro-aceita-convite-ministro-da-justica-bolsonaro.htm>. Acesso em nov.2018

14 – O jornal francês “Le Monde” lançou uma intrigante pergunta: “Foi por ter emprisionado o líder da esquerda brasileira que o magistrado será recompensado pelo futuro chefe de Estado de extrema-direita, Jair Bolsonaro?” Jornal Le Monde. “Au Brésil, les ambiguïtés du juge anticorruption Sergio Moro avec l’extrême droite”. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/ameriques/article/2018/10/31/les-ambiguites-du-juge-anticorruption-sergio-moro-avec-l-extreme-droite_5377005_3222.html>. Acesso em  nov.2018

15 – “As disputas por espaços de poder, antes restritas à arena política, especialmente no âmbito do parlamento, se expandem a cada dia mais para a arena jurídica, com embates no plano judicial, não apenas pelo acesso dos políticos e partidos ao Judiciário com demandas sobre questões que estão até mesmo no dia a dia da vida parlamentar, como é o caso da discussão sobre a legalidade ou constitucionalidade de tramitações de projetos de lei ainda em discussão no Congresso Nacional, mas também com a incidência da justiça penal sobre agentes políticos, afetando diretamente as questões políticas”. CARREIRO, Geraldo & FARIAS, Athena & FARIAS DE OLIVEIRA, Gislene. (2017). “Considerações sobre o Instituto do Lawfare”. Id on Line REVISTA DE PSICOLOGIA. 10. 363. 10.14295/idonline.v10i33.661.  Disponível em: <https://www.conpedi.org.br/publicacoes/pi88duoz/p9y740ys/R8nRJeoAL448mQUP.pdf>. Acesso em nov.2018

16 – Sobre o “Lawfare” na América Latina: Portal América Latina em Movimiento. “Lawfare: nueva guerra juridica en America Latina”. Disponível em: <https://www.alainet.org/es/articulo/190723>. Acesso em nov.2018