Débora Spagnol


debora 2Quase todas as pessoas têm suas próprias opiniões sobre diversos assuntos, ou seja: sua própria avaliação subjetiva sobre algo. E é a pluralidade de avaliações pessoais que torna impossível a construção de um verdadeiro conhecimento baseado somente em opiniões.

Há vários séculos, os gregos produziram longas discussões sobre a “doxa” para a democracia. De forma simples, o termo “doxa” significa “opinião”, pois parte dos desejos, dos sentidos e das experiências pessoais, por isso mesmo definida por Platão como sendo “enganosa”, substitutiva do verdadeiro conhecimento (que, segundo a maioria dos filósofos, se encontra exclusivamente na ciência ou “episteme”). (1)

Já em 1644, o britânico John Milton publicou sua “Areopagítica”, uma das mais importantes obras sobre a proteção da liberdade de expressão e de imprensa. (2)

Assim, embora as discussões sobre a liberdade de expressão e acesso à informação e ao conhecimento como necessários à democracia, desenvolvimento e promoção de direitos humanos não sejam novidade, é inegável que o advento das novas tecnologias – em particular a expansão da internet – ofereceu uma dimensão individualizada e sem procedentes para esses debates.

Em um mundo a cada dia mais conectado (cidadãos de todas as idades tem acesso quase ilimitado a todos os tipos de informações), o avanço das sociedades está intimamente ligado ao aprofundamento das discussões acerca de questões como o direito à liberdade de expressão, à intimidade, privacidade, proteção de dados, desenvolvimento da mídia, entre tantos outros.

Mas diante de tantas e profundas mudanças trazidas pelo avanço da tecnologia, surge uma questão essencial: é possível conjugar a ampla proteção às liberdades de opinião e expressão – na forma consagrada pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (3) – nessa atual conjuntura social no que se refere à informação ?

Com o advento da internet, nossa sociedade sofreu uma era de transformações tão profundas quanto as que ocorreram com o surgimento da impressão.

Antes de Gutenberg inventar a tipografia (impressão móvel) em 1439, possibilitando a produção e circulação em massa de livros, revistas e outros informativos (4), o homem comunicou-se através de pinturas de caçadas nas paredes, de rumores e relatos pessoais com credibilidade controversa e até mesmo através de cartas e bilhetes individuais ou de restrita circulação. Da impressão em larga escala surgiram, além de profundas reformas e revoluções sociais (como a Guerra dos Trinta Anos), grandes avanços: a aritmética, a alfabetização e a capacidade de interpretar as metáforas e comparações literárias passaram a ser essenciais aos cidadãos. (5)

Com o século XX surgiram o rádio e a televisão analógica, através dos quais a comunicação passou a atingir diretamente milhares de pessoas, adentrando na intimidade de seus lares. Com tamanho alcance, as emissoras se transformaram em  centros de poder, onde proprietários e distribuidores de conteúdos possuem total controle de quais informações são entregues à população e de que forma isso se realiza, decidindo de acordo com seus próprios interesses. Assim, a percepção de mundo dos destinatários do conteúdo transmitido é moldada de acordo com o fornecedor de tal conteúdo. Daí a conclusão inevitável de que, para que se possa garantir a ampla democracia à população, os meios de comunicação devem ser diversificados e não centralizados, promover o amplo intercâmbio de informações, o debate e fomentar a multiplicidade de opiniões. Somente assim é possível afirmar que há efetiva liberdade de expressão.

Com o surgimento da internet – originalmente criada como uma rede de defesa e somente depois se tornando um meio de comunicações global (6) – novas e irreversíveis modificações sociais ocorreram: o acesso às redes e à incontável quantidade de informações ali armazenadas é feito por pessoas comuns; a transmissão de dados se dá de forma quase instantânea; a criação de conteúdo é faculdade de quase todos os usuários e tornou-se possível a coexistência de diferentes meios de comunicação em um mesmo espaço. E nesse espaço com tantos usuários e uma infinidade de informações, é fácil constatar que algumas barreiras naturalmente se rompem.

Enquanto direito fundamental, a liberdade de expressão já foi prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos e de forma subjetiva aos direitos de liberdade de pensamento e opinião (art. 18), de liberdade de associação (art. 20) e de participação no governo (art. 21). E tal se dá com base no tripé identidade (necessitamos exercer nossa capacidade de comunicação de forma integral para a realização de nossa humanidade); base para outros direitos e liberdades – sem a liberdade de expressão, restam inatingíveis os direitos humanos e a própria democracia de forma plena; desenvolvimento social e econômico, já que comunicações transparentes e abertas são necessárias para assegurar o desenvolvimento econômico e social que beneficia a coletividade.

Assim posto, para que seja atingida em sua plenitude a liberdade de expressão deve ter caráter “público”, abrangente e inclusivo, possibilitando aos indivíduos que não somente recebam as várias correntes de informações e ideias, mas que também possam busca-las e, de forma livre, compartilhá-las.

E foi esse justamente o espaço do qual se ocupou a internet: com sua capacidade infinita de armazenamento de informações, ambiente que possibilita a coexistência de diversos modos de comunicação e sua rápida capacidade de adaptação, a rede mundial de computadores tornou-se o principal meio para a “democratização” da liberdade de expressão. Sem intermediários (como jornalistas e outros), qualquer pessoa pode comunicar-se de modo direito com qualquer pessoa do outro lado do mundo, seja para vender um produto, denunciar brutalidades contra animais e até mesmo eleger ou depor governantes.

Nesse reduzido espaço, não se pretende abordar as inúmeras ameaças à liberdade de expressão que podem surgir do mau uso da internet – do bloqueio de acesso a endereços e sítios eletrônicos por quem detém esse poder até o direcionamento de usuários a determinados conteúdos, numa versão atual da censura, há inúmeros casos de violações ao direito e que certamente merecem um texto específico.

Já as novas tecnologias contêm inúmeros recursos e ferramentas que auxiliam na promoção da liberdade de expressão: de aplicativos que permitem a navegação de forma privada – protegendo o sigilo de informações entre usuários – até métodos de criptografia que constituem fatores de proteção não somente dos conteúdos disseminados, mas também aos meios de transmissão e suporte desses conteúdos.

Por outro lado, embora a maioria dos cidadãos tenha à sua disposição o acesso a um volume quase infinito de informações e possa se conectar a milhares de usuários, é importante destacar que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, devendo ser equilibrado com os direitos do público e da comunidade a que pertencem.

Por se constituir meio global de troca de informações, a internet desconhece barreiras territoriais e, assim, pode permitir que usuários acessem conteúdos que são ilegais em seus países, mas permitidos nos países nos quais foram baixados na rede. Até por isso a legislação acerca da matéria, individualizada em cada país de acordo com seus próprios preceitos, se torna assunto tormentoso aos provedores de internet. Surge, assim, o “desafio jurisdicional” a ser enfrentado pelos defensores da liberdade de expressão no mundo digital.

Para além das leis e para que se garanta a ampla liberdade de expressão on-line, é fundamental a criação de políticas públicas que possam tornar o ambiente de internet aberto, acessível e multiparticipativo aos povos. Nesse aspecto, serão trabalhados assuntos como “governança on line”, infraestrutura, neutralidade da rede, camada de conteúdo, camada sociopolítica e diminuição das desigualdades entre usuários.

O Brasil está entre os países com maior número de usuários da internet e, entre eles, das redes sociais. E em tempos de exacerbados embates políticos, divulgação de graves casos de corrupção, aprovação de projetos em desfavor da coletividade e ânimos exaltados, não se pode considerar como “pacífico” o comportamento on line dos brasileiros.

Assim, embora nem sempre aparente, há uma linha divisora entre liberdade de expressão na internet e comportamento irresponsável e violador dos direitos de outrem e, como já se disse em artigo específico (7), a internet não é uma terra sem leis. Ao contrário: várias condutas na rede podem configurar crimes contra a honra (ameaça, calúnia, difamação, injúria e falsa identidade), cyberbullying, pornografia infantil, pornografia de vingança, sujeitando o infrator a condenações criminais e cíveis (indenizatórias).

Não obstante possua em seu arcabouço jurídico todas as leis necessárias a garantir o equilíbrio entre a liberdade de expressão e os direitos à honra, privacidade e intimidade de outrem, por vezes o legislador procura garantir ao Estado o monopólio de decidir o que pode ou não ser publicado, o que pode se travestir de censura.

Exemplo disso foi um recente dispositivo incluído às pressas no projeto de reforma política que permitia a suspensão de conteúdo da internet sem autorização judicial, autorizando sites a retirar, mediante simples notificação, o que um candidato considerasse como “discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa”. (8) Após manifestações de varias entidades civis alegando censura, o artigo foi vetado e prevaleceu o contido no Marco Civil da Internet, que prevê ser possível a suspensão ou retirada de informações e opiniões mediante ordem judicial (9).

Além da criminalização das condutas e a condenação financeira às vítimas, parece-nos mais efetiva, porém, a educação digital do usuário: nosso país engatinha no exercício da democracia e da liberdade de expressão. Mas somente pela educação ética e inclusiva, com cidadãos preparados e capazes de escolher de forma consciente o tipo de sociedade que desejam será possível o exercício da liberdade – não apenas de expressão, mas de vida.

FONTES:

1 – https://pt.wikipedia.org/wiki/Doxa. Acesso em dezembro/2017

2 – “O Areopagítica, publicado em 1644 sobre o título completo “Areopagítica: Um discurso do Sr. John Milton pela liberdade de impressão sem licença ao Parlamento de Inglaterra”, foi a resposta de John Milton do Parlamento britânico ante a reintrodução do Governo da concessão de licenças de imprensa, portanto, a editores. Deste modo Milton articulou os eixos dos futuros debates em torno de Liberdade de expressão. Ao definir o alcance da liberdade de expressão e de “prejudicial” O discurso de Milton argumenta na contra-mão do princípio da pre-censura e a favor da tolerância para uma ampla faixa de pontos de vista”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_direitos_de_autor. Acesso em dezembro/2017

3 – Declaração Universal dos Direitos Humanos da Unesco, de 1948. “Art. 19 – Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em dezembro/2017

4 – Mais informações disponíveis em: https://educacao.uol.com.br/biografias/johannes-gutenberg.htm. Acesso em dezembro/2017

5 – Puddephatt, Andrew. Liberdade de expressão e internet. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002466/246670por.pdf. Acesso em dezembro/2017

6 – “De onde surgiu a internet ? O presidente norte-americano Eisenhower criou a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (em inglês, ARPA) em 1958 em resposta direta ao lançamento do satélite russo Sputnik, alarmado com as evidências de avanços tecnológicos soviéticos. A ARPA criou uma rede de computadores interligando apenas quatro computadores, dando origem à rede ARPANET. Em 1973, os engenheiros começaram a procurar maneiras de conectar os computadores da ARPANET por meio de rádio, ao invés de enviar dados por meio de linhas telefônicas (PRNET ou “packet radio network”). Em 1977, as comunicações via satélite foram adicionadas (SATNET) e o conjunto de conexões entre múltiplas redes passou a ser chamado de “internetworking”, ou internet (…)”. Puddephatt, Andrew. Op. Cit.

7 – Texto completo no link: http://femininoealem.com.br/19274/sobre-internet-e-crimes/. Acesso em dezembro/2017.

8 – http://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2017/10/epoca-negocios-precisamos-investir-na-educacao-digital.html. Acesso em dezembro/2017.

9 – Lei 12.965/14: “Art. 19 – Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

  • 1o A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
  • 2o A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal (…)”.

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