Débora Spagnol

debora 2Devedores da União que, notificados para pagamento integral do débito, não o fizerem no prazo de cinco dias, poderão ter seu patrimônio indisponibilizado, o que significa que estarão impedidos de realizar qualquer tipo de negociação com aquele bem, como a venda. O novo procedimento é chamado de “averbação pré-executória”.

Esse é o resultado prático da promulgação da Lei nº 13.606/2018 (1), inicialmente nominada como Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), mas no bojo da qual, maliciosamente, foram acrescentados três artigos que podem desencadear em bloqueio patrimonial de quem possuir qualquer dívida da União e estiver inadimplente.

A nova regra está no artigo 25 da “lei do Funrural” (2), que acrescentou o artigo 20-B à Lei 10.522/2002, que diz respeito aos cadastros de inadimplentes federais.

Estima-se que no país há um total de 4,5 milhões de contribuintes que têm algum tipo de débito com a União e estão inscritos em dívida ativa. Com a nova lei, eles poderão ter seus bens – carros, imóveis, embarcações e aeronaves – bloqueados antes mesmo de autorização da justiça.

Com a nova legislação, a partir do momento que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) notificar o contribuinte, ele terá até cinco dias para quitar o débito original, juros e correção monetária. Caso isso não seja feito, a procuradoria poderá comunicar a existência da dívida aos cadastros de restrição ao crédito e averbar a certidão da dívida ativa (CDA) nos órgãos de registro de bens e direita sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis, mesmo sem a ordem de um juiz.

Ainda segundo a PGFN, entre as dívidas inadimplidas as mais comuns são as tributárias, especialmente contribuições previdenciárias, Imposto de Renda (PF e PJ), PIS/COFINS e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

A justificativa utilizada pela Procuradoria é de que os dispositivos se destinam a proteger terceiros de boa-fé que inadvertidamente pretendam adquirir os bens dos devedores, podendo ser surpreendidos posteriormente com a penhora do bem, sofrendo inúmeros transtornos. A averbação da indisponibilidade, assim, impediria que o bem fosse alienado. Segundo a PGFN, entre 2012 e 2017 os devedores alienaram imóveis num montante superior a 50 bilhões, prejudicando a credora (União) e os terceiros de boa-fé que compraram esses bens.

Ocorre, porém, que já há entendimentos de que a nova lei, na forma aprovada, viola súmulas do STF, artigos da Constituição Federal, a Lei de Execução Fiscal, o Código Tributário Nacional e o Código de Processo Civil, sendo portanto, inconstitucional e arbitrária.

No âmbito constitucional, pode-se alegar que a lei fere direitos fundamentais como o contraditório e a ampla defesa, já que a União poderá avançar no patrimônio do contribuinte sem que ele seja previamente ouvido. Por força da constituição, ninguém poderá ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Fere ainda a livre iniciativa e o princípio da proporcionalidade, bem como o princípio de que a execução deve se proceder da forma menos onerosa possível ao contribuinte. E viola o princípio da inafastabilidade da jurisdição, já que somente depois de submetida a dívida ao contraditório e à ampla defesa, o patrimônio do devedor poderia ser atingido.

Além disso, há que se considerar ainda que a sonegação nem sempre é fruto de intenção de lesar o fisco: há situações de pessoas que foram vítimas de um erro e que, com a nova lei, poderão ser enquadradas como sonegadores, tendo seus bens indisponibilizados. É injusto tratar da mesma maneira um contribuinte honesto e um desonesto.

Até a promulgação da lei, as penhoras por dívidas fiscais eram feitas pelo judiciário, no bojo de processos executivos movidos pelos procuradores (estaduais ou federais, dependendo dos tributos) que, distribuídos ao juízo, determinavam inicialmente a citação do devedor para pagar. Impaga a dívida, recaía a penhora sobre os bens abrindo-se então ao devedor a possibilidade de discutir a dívida e o ato expropriatório. Acaso a Fazenda não obedecesse o prazo de cinco anos para executar a dívida, a mesma estaria prescrita, não mais podendo ser exigida. Bloqueados os bens, o devedor poderia dirigir-se ao Juiz da causa alegando suas matérias de defesa, interpondo embargos no prazo de trinta dias.

Com a nova lei, bastará o envio de uma carta ou e-mail ao devedor, presumindo-se seu recebimento no prazo de quinze dias do envio. Se o contribuinte estiver de férias, por exemplo, sem acessar o e-mail, poderá ser surpreendido com o bloqueio e nada poderá fazer para proteger seu patrimônio. A lei não especifica também qual o prazo de defesa, qual o tipo de ação e para qual juiz deverá recorrer o contribuinte que tiver seus bens bloqueados. É omissa ainda quanto ao prazo a ser observado pela Fazenda para ajuizar a execução do débito. Assim, se o contribuinte tiver que defender-se do bloqueio via mandado de segurança, por exemplo, deverá ainda manejar embargos à execução quando ajuizada a ação executiva. Por fim, a lei suprimiu ainda um importante aspecto da ampla defesa: a possibilidade de despachar com o juiz do processo, já que não se conhece quem será o procurador que determinou o bloqueio, sendo praxe dos procuradores a recusa de atender advogados.

O único ponto positivo se traduz no fato de que a PGFN só deve ajuizar execução quando o devedor tiver bens penhoráveis. Com isso, talvez se reduza o volume de ações inúteis, diminuindo a sobrecarga do Judiciário. Na inexistência de bens, serão utilizados mecanismos normais de cobrança.

Com mais essa norma, a sociedade torna-se mais uma vez vítima do que se pode chamar de “crimes fiscais contra o contribuinte” (3): perdas financeiras em desfavor do cidadão, na ânsia do governo de buscar o que não lhe pertence, muitas vezes – como é o caso da lei ora tratada – utilizando-se da mão forte da lei para possibilitar absurdos.

São alguns exemplos dessa conduta em desfavor dos cidadãos:

Protesto da dívida ativa – previsto na Lei nº 12.767/12 (4). Impago o tributo inscrito em dívida ativa, as CDA´s são encaminhadas para protesto, somando-se ao valor principal do imposto juros, correção monetária, honorários da procuradora (em geral 20%) e custas cartorárias. A injustiça é ainda maior quando as procuradorias encaminham a protesto dívidas prescritas (vencidas há mais de cinco anos), prejudicando sobremaneira o contribuinte que, negativado, resta impossibilitado de negociar e comprar a crédito. Alias, o protesto de dívida fiscal prescrita configura crime de “excesso de exação”, previsto no art. 316, §1º, do Código Penal, sujeitando o infrator a pena de reclusão de três a oito anos.

– Atividades policiais desnecessárias – é praxe a intimação de contribuintes para que forneçam às autoridades policiais livros e documentos fiscais, motivados por denuncias anônimas de sonegação fiscal. Ocorre que denúncias anônimas não são nulas, sendo portanto insuficientes à instauração de inquéritos para apurar sonegação fiscal. A investigação policial somente é possível e legal após o lançamento tributário, sendo ônus exclusivo do Fisco a prova de sonegação ou fraude, que não se presumem.

– Retardamento de atos de ofício – significa a demora além do tempo razoável para a prática, por servidor público, de ato que lhe caiba por força de lei. A demora no atendimento ao cidadão nos órgãos públicos e a falta de presteza e efetividade na prestação dos serviços requeridos são exemplos de atos de ofício retardatários e que prejudicam os cidadãos junto às repartições municipais, estaduais e federais.

Do primeiro ônus fiscal suportado pelo Brasil na indústria extrativa – a Coroa Portuguesa considerou o pau-brasil como monopólio real, autorizando sua extração mediante o compromisso de que o extrator erguesse fortificações ao longo da costa, iniciasse a colonização e pagasse a quinta parte do produto da venda da madeira (4) – até o excessivo número de impostos, taxas e contribuições de melhoria, o Estado fez aumentar assustadoramente não só a fatia retirada do cidadão – mas principalmente os meios coercitivos de arrecadação, cada vez mais intimidadores.

A fome do “leão” só aumenta.

Em tempo: O leão foi utilizado pela Receita Federal a partir da década de 80 para popularizar o imposto de renda e, segundo consta, por possuir características relevantes: por ser considerado o “rei dos animais” traz uma imagem de justiça e lealdade e representa uma imponência pacífica. Atualmente, porém, é relevante considerar que, ao contrário do animal que mata por alimento, território e instinto de preservação, o fisco “mata” para financiar a corrupção, subvencionar a péssima utilização do dinheiro público e bancar a incompetência de nossos governantes.

 

REFERÊNCIAS:

1 – Lei nº 13.606/2018. Íntegra disponível no link: http://www.normaslegais.com.br/legislacao/lei-13606-2018.htm. Acesso em fevereiro/2018.

2 – “Art. 25 –  A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 20-B, 20-C, 20-D e 20-E:

Art. 20-B – Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados

  • 1º –  A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição.
  • 2º –  Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública.
  • 3º –  Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:

I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e

II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.”

Art. 20-C – A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá condicionar o ajuizamento de execuções fiscais à verificação de indícios de bens, direitos ou atividade econômica dos devedores ou corresponsáveis, desde que úteis à satisfação integral ou parcial dos débitos a serem executados.

Parágrafo único. Compete ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional definir os limites, critérios e parâmetros para o ajuizamento da ação de que trata o caput deste artigo, observados os critérios de racionalidade, economicidade e eficiência.”

Art. 20-D. (VETADO).

Art. 20-E – A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editará atos complementares para o fiel cumprimento do disposto nos arts. 20-B, 20-C e 20-D desta Lei.”

3 – HAIDAR, Raul. “A grande injustiça dos pequenos crimes fiscais”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-jun-17/justica-tributaria-grande-injustica-pequenos-crimes-fiscais. Acesso em fevereiro/2018.

4 – A Lei 12.767/12 acrescentou o § único ao artigo 1º da Lei 9.492/97, que passou a ter a seguinte redação:

“Art. 1º – Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.

Parágrafo único – Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas”.

5 – FERREIRA, Rodrigo. Tributos: origem e evolução. Disponível em: https://rfersantos.jusbrasil.com.br/artigos/222353175/tributos-origem-e-evolucao. Acesso em fevereiro/2018.