Débora Spagnol

debora 2Não existe violência, mas “violências” múltiplas, com diversos graus de visibilidade, abstração e definição de suas alteridades. A violência é fenômeno de natureza complexa a multifacetada que tem se intensificado em todas as sociedades e possui raízes sociais, biológicas, psicológicas e ambientais, possuindo natureza complexa e multifacetada. (1). Nem mesmo os arcabouços jurídicos criados para, entre outras finalidades, conter a violência social, são capazes de reprimir os diversos tipos de agressões cometidas pelo homem contra sua própria espécie.

A pior das violências é a doméstica porque além de – como as demais violências – atentar contra a incolumidade física e psicológica de outrem, viola os valores mais caros à maioria dos seres humanos: a confiança, a segurança e a lealdade. É no seio da família que se espera encontrar apoio, entendimento e acolhimento e a violência contraria tudo isso, rompendo o vínculo de afeto que deve permear os relacionamentos saudáveis.

Desde o início da civilização a violência sempre permeou a maioria das relações familiares, mas o assunto somente ganhou reconhecimento na agenda das políticas públicas brasileiras há pouco tempo, em parte como resultado da ampliação das pesquisas acadêmicas.

As pesquisas mostram que os segmentos mais atingidos pela violência doméstica são justamente os mais vulneráveis: crianças, mulheres e idosos, que são naturalmente mais fracos no que se refere à força física e muitas vezes econômica, se confrontados com os indivíduos adultos e do sexo masculino, dentro do ambiente familiar.

Porém, muitas vezes por desconhecimento das leis e até dos órgãos que as protegem, essas vítimas deixam de denunciar as situações de violência. No caso das mulheres, o principal receio diz respeito às consequências da pós-denúncia: criar os filhos sozinha, não conseguir arcar com todas as responsabilidades do lar e até mesmo as ameaças do agressor. As crianças não o fazem por motivos óbvios, já que encontram limitações dentro da própria família: os parentes e amigos próximos costumam não se envolver nas “brigas de família”. Os idosos deixam de denunciar principalmente em razão dos sentimentos da família idealizada internalizada pelas vítimas e pelo amor dos pais pelos filhos, além do medo de vivenciar novas situações de maus-tratos e desigualdade de poder dos idosos em relação aos mais jovens.

A violência física é a que se torna mais visível em razão das marcas que deixadas nas vítimas. Nos casos mais graves, vidas são suprimidas de forma violenta e podem configurar, quando a vítima for mulher, o crime de feminicídio. (2)

Há porém outros tipos de violência que pouco são reveladas (e muitas vezes até são relevadas pelas vítimas), mas que resultam em prejuízos iguais ou até mais graves às vítimas do que a violência física.

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) foi inserida no ordenamento pátrio com a finalidade de proteger a mulher em seus direitos constitucionais fundamentais, principalmente a igualdade material entre os gêneros. Para que isso fosse possível, fez-se então necessário abranger todas as formas de violência doméstica e familiar. Por isso, a LMP trata não somente das formas mais evidentes de violência (como a física e sexual), mas também abrange as formas menos visíveis, como a psicológica, moral e patrimonial. (3)

O patrimônio (ou a falta dele) indubitavelmente contribui para a caracterização de uma vida digna ou indigna, na medida em que define a satisfação das necessidades e o padrão de vida de quem o possui. A subtração do patrimônio, quando realizada como meio de punição à vítima, configura então uma das formas de violência.

A Lei Maria da Penha associou o conceito de crimes patrimoniais previstos no Código Penal. Assim, os atos que constituem violência patrimonial contra a mulher são os mesmos ilícitos contidos nos tipos penais de furto, usurpação, dano, apropriação indébita e estelionato.

De acordo com ao artigo 7º, IV, da Lei Maria da Penha, a violência patrimonial é compreendida como conjunto de atos que limitam a propriedade, a posse e o uso dos bens e valores patrimoniais sobre os quais a mulher detém direitos. O delito é assim definido: “(…) qualquer ato que implique retenção, subtração, destruição parcial ou total de bens, valores, documentos, direitos e recursos econômicos sobre os quais a vítima possua titularidade”. (4)

Como “patrimônio”, portanto, são definidos não apenas os bens de relevância patrimonial e econômico-financeira direta, mas também aqueles que apresentam importância pessoal (objetos de valor efetivo ou de uso pessoal) e profissional, necessários ao pleno exercício da vida civil e que sejam indispensáveis à digna satisfação das necessidades vitais. Os bens a serem protegidos podem ser de propriedade exclusiva da mulher ou de propriedade comum, decorrentes da mancomunhão.

Assim, a conduta chamada de “violência patrimonial” consiste na recusa do agressor em entregar à vítima seus bens, valores, pertences e documentos, como forma de vingança ou até para obrigá-la a permanecer no relacionamento contra a vontade.

Resta também caracterizada a violência patrimonial quando o companheiro deixa de cumprir com o pagamento dos alimentos fixados à companheira, independentemente de fixação judicial. Nesse caso, o delito configura também o “abandono material” previsto no art. 244 do Código Penal.

É tipificada como “violência patrimonial” também a situação em que a mulher for coagida ou induzida ao erro e, com isso, vier a transferir bens de sua propriedade para o agressor.

Há também outras condutas muitas vezes encaradas como manifestações amorosas mas que em verdade constituem violência patrimonial: impedir o acesso ao dinheiro ou aos meios de obtê-lo, até que a mulher se torne financeiramente dependente do agressor para ver satisfeitas até mesmos as necessidades básicas como alimentação, vestuário e moradia; impedir a mulher de trabalhar ou frequentar a escola; reter os meios de sobrevivência, como alimentação; impor exigências para que a mulher justifique os seus gastos, geralmente acompanhadas por punição da vítima através de abuso físico, verbal ou sexual; proibir a mulher de manter conta bancária pessoal.

Ao violador, a LMP prevê medidas protetivas relevantes, destinadas à proteção do patrimônio da vítima e que podem ser deferidos pelo Juiz na forma de tutela cautelar. Elas estão previstas no artigo 24 da Lei e são as seguintes: restituição de bens indevidamente substraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial, suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor e prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Não se aplicam nesse delito as imunidades absolutas ou relativas (5) previstas no Código Penal.

Caso o Magistrado não vislumbre justificativa suficiente para a concessão da medida (que inclui a busca e apreensão de bens), poderá determinar o seu arrolamento, a fim de preservar o patrimônio e evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação à ofendida.

É importante destacar que essa forma de violência raramente se apresenta separada das demais, servindo, quase sempre, como meio para agredir, física ou psicologicamente, a vítima. (6)

No contexto da violência patrimonial, o segmento que mais sofre o crime é o idoso, mesmo aqueles que são os provedores do núcleo familiar. Como fatores de risco às vítimas, pode-se destacar o alto grau de dependência psicológica, física e econômica dos agressores, o isolamento social do idoso, a limitada rede de suporte familiar e até mesmo o estresse dos cuidadores.

Os casos mais comuns de violência patrimonial contra idosos consistem na exploração imprópria (legal ou ilegal) de bens financeiros e patrimoniais do idoso por pessoas com quem ele possui laços afetivos; contratação de empréstimos contra a vontade; utilização dos bens ou de sua renda de forma não autorizada ou controle total dos proventos da vítima.

Embora o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) tenha possibilitado uma maior fiscalização/punição dos casos de maus tratos e violência na velhice, ainda são raras as notificações de violência patrimonial contra os idosos no âmbito da família. Entre os motivos do silêncio acerca da agressão, podemos relacionar a desigualdade de poder dos idosos em relação aos jovens e ao medo do idoso de perder os laços familiares.

 

REFERÊNCIAS

1 – RAMOS PEREIRA, Rita de Cássia Bhering et alii. O fenômeno da violência patrimonial contra a mulher: percepção das vítimas. Disponível em:  http://www.seer.ufv.br/seer/oikos/index.php/httpwwwseerufvbrseeroikos/article/viewFile/89/156. Acesso em abril/2017.

2 – Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Suas motivações mais usuais são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro. O crime está previsto na Lei nº 13.104/15, que alterou o artigo 121 do Código Penal, constituindo-se com qualificadora do homicídio e como crime hediondo (Lei 8.072/90). Prevê pena de reclusão de 12 a 30 anos.

3 – O art. 7º da Lei Maria da Penha lista as formas de violência contra a mulher, a saber: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

4 – OLIVEIRA, Aline Arêdes de. Violência doméstica patrimonial: a revitimização da mulher. Disponível em: http://bdm.unb.br/handle/10483/6755. Acesso em abril/2017.

5 – Assim entendidas as causas extintivas de punibilidade. A Lei Maria da Penha excluiu a violência patrimonial das possibilidades previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal, que prevê extinção da punibilidade dos crimes praticados no seio familiar. Assim, se a vítima for mulher que mantenha vínculo de natureza familiar com o autor, o mesmo deverá ser submetido a processo criminal.

6 – CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), comentada artigo por artigo. 2ª ed. Ver. atual. e ampl. São Paulo: