Débora Spagnol

Debora SpagnolEduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio assim escreveu sobre o corpo: “A igreja diz:
O corpo é uma culpa. A ciência diz: O corpo é uma máquina. A publicidade diz:
O corpo é um negócio. O corpo diz:
Eu sou uma festa”. (1)

O corpo humano exprime o elo entre a natureza e a cultura, entre o social e o individual, o fisiológico e o simbólico. Moldado pelo contexto social e cultural no qual o sujeito se insere, é através do corpo que se evidencia sua relação com o mundo: expressão de sentimentos, produção de aparência, representações simbólicas, transformações do natural … É através do corpo que o homem faz do mundo a extensão de sua experiência.

Foi com o surgimento da modernidade capitalista oriunda da revolução industrial e suas profundas transformações sociais, culturais e econômicas, que ocorreram grandes alterações na subjetividade humana, manifestando-se principalmente nas próprias relações entre os indivíduos. As mudanças de comportamento trazidas pela relevância das máquinas, pela dinâmica dos fluxos de trabalho e pela cultura do consumo provocou uma mudança no quadro de valores da sociedade, onde os indivíduos passaram a ser avaliados (e por vezes valorizados) não mais pelas suas qualidades internas e pessoais, mas por sua aparência, pela vestimenta, pelos objetos que exibem e pelo jeito que se comportam. (2) Em outras palavras: a visibilidade social e o poder de sedução do indivíduo passaram a ser diretamente proporcionais ao seu poder de compra, traduzindo-se numa verdadeira “cultura do consumo” inserida numa “sociedade do consumo”, onde imperam as logomarcas, a produção do supérfluo e descartável, numa era identificada pela imagem e simulacro em que, segundo Baudrillard, “o mais belo, precioso e resplandecente de todos os objetos é o corpo” (3).

Como consequência natural, surge a “objetificação” dos sujeitos – que significa simplesmente analisar um indivíduo em nível de objeto, sem considerar seu emocional ou psicológico.

A objetificação não se restringe a sexo, mas para os fins que se propõem neste texto aborda-se a objetificação do corpo feminino e que, embora tantos avanços sociais obtidos, ainda aparece como reflexo da forte cultura patriarcal brasileira. No passado as mulheres dependiam  economicamente dos homens – o casamento constituía uma fonte segura de dependência financeira, em que eram sustentadas em troca dos afazeres domésticos e satisfação sexual dos parceiros. Hoje, com mulheres independentes financeiramente, o “ranço” patriarcal traz a alguns homens a falsa perspectiva de que o corpo feminino se constitui em mero objeto para seu prazer. Como resultado, surgem a esteoritipação da mulher com a imposição de padrões estéticos irreais e consequente exclusão e depreciação de mulheres que não atendem a esses padrões e a auto-objetificação da mulher, processo em que ela própria (geralmente movida por baixa autoestima e necessidade de aceitação) se empenha em tornar seu corpo sexualmente atraente para os homens em detrimento de suas próprias expectativas, ignorando seus próprios atributos psicológicos e emocionais que a caracterizam como um indivíduo único.

Nesse cenário de objetificação do corpo feminino e dos relacionamentos cada vez mais virtuais e fluídos, como então diferenciar quando uma conduta com intenções sexuais e amorosos constitui simples cantada ou pode configurar assédio ?

O limite entre cantada e assédio ganhou as redes sociais após a publicação de uma carta assinada por cem francesas – entre elas, a atriz Catherine Deneuve — que defendem a liberdade dos homens “de importunar” como algo indispensável à liberdade sexual. A carta surgiu como resposta ao protesto de artistas americanas na entrega do Globo de Ouro, cujo início foi o escândalo envolvendo o produtor de cinema Harvey Weinstein, com quase todas as convidadas vestindo preto. (4)

As relações interpessoais, a princípio, não são regidas por manuais, mas condicionadas por códigos culturais compartilhados. Por isso, embora algumas situações sejam difíceis de definir objetivamente, elas são perfeitamente entendidas pelas pessoas envolvidas. Um olhar ou um toque de mãos, por exemplo, são facilmente compreendidos por quem é observado ou tocado.

A reciprocidade e o interesse mútuo, são, portanto, os grandes divisores de águas para estabelecer o que é uma manifestação saudável de interesse de uma pessoa por outra. Uma  relação entre duas ou mais pessoas deve estar pautada pelo respeito, pela autonomia, pela liberdade e pelo desejo.

Assim, investidas sutis (na forma de elogios ou atos) que possibilitam a percepção de que o que se pretende é uma conexão voluntária, sem atos indesejados, podem ser definidas como as populares “cantadas”. Porém, se o interesse de conhecer alguém ou elogiar se manifesta através de palavras ou atos que exponham o outro ou o façam sentir-se invadido, ameaçado ou encabulado, caracteriza-se o “assédio verbal”, previsto no art. 61 da Lei das Contravenções Penais. Apesar de ser considerado um crime-anão, ou seja, com potencial ofensivo baixo, o assédio verbal deve ser denunciado e coibido, pois gera constrangimento e outros impactos psicológicos na vitima, como insônia, depressão, aumento de pressão arterial, dor no pescoço e transtornos alimentares (com aumento ou perda de peso).

Já o “assédio sexual” não é paquera nem elogio. É uma manifestação grosseira e que pode vir de uma atitude verbal ou física, com ou sem testemunhas, e acontecer em salas de aula, ônibus, ambiente de trabalho, boates, consultórios médicos, na rua, em templos religiosos. O assédio não tem um local específico. Porém, para que seja considerado crime no Brasil, o assédio sexual deve acontecer no bojo de uma relação laborativa entre os sujeitos ativo e passivo. Se não houver vínculo laborativo, a conduta inadequada será enquadrada como outro crime, se tipificado. (5)

De acordo com o artigo 216 do Código Penal (6), o assédio sexual caracteriza-se por constrangimentos e ameaças com a finalidade de obter favores sexuais em razão de emprego, cargo ou função, feita por alguém que dispõe de posição superior hierárquica à vítima.  A pena é de detenção e varia entre um e dois anos, caso o crime seja comprovado.

A conduta que tipifica o crime é o “constrangimento”, o que significa, além de forçar, coagir, obrigar, compelir, incomodar, tolher a liberdade, cercear, embaraçar a pessoa da vítima, seja através de palavras (oralmente ou por escrito) ou de gestos. Qualifica-se como sujeito ativo do crime qualquer pessoa que ocupe posição superior ou tenha ascendência, na relação laborativa, sobre a vítima. Já o sujeito passivo, deve ser o subordinado ou empregado de menor escalão. O prazo para que a vítima ofereça uma representação contra o ofensor é de seis meses.

No trabalho, a vítima que for demitida injustamente ou que sofrer outras represálias deverá procurar o sindicato de sua categoria, para que este a represente perante a Justiça ou buscar o Ministério Público do Trabalho (MPT) da comarca da sua residência. A OIT, órgão das Nações Unidas, caracteriza assédio sexual no trabalho quando ele apresenta pelo menos uma das seguintes particularidades que atingem a pessoa assediada: ser claramente uma condição para dar ou manter o emprego; influir nas promoções ou na carreira; prejudicar o rendimento profissional; humilhar, insultar ou intimar. É importante que a vítima recolha o máximo de informações sobre o assédio com gravações, e-mails ou mensagens, que serão importantes para a instrução do processo criminal ou cível (indenizatório de danos patrimoniais e extrapatrimoniais) que venha a ajuizar em face do assediador.

Além disso, o Governo Federal disponibiliza o número 180 (Central de Atendimento à Mulher) para mulheres denunciarem os casos de assédio. Mas em locais públicos ou privados, as vítimas dessas situações podem e devem buscar ajuda de um policial ou segurança do local. Em situações mais complexas, como quando ocorre durante uma consulta, por exemplo, onde não há testemunhas, a vítima deve fazer a denúncia em uma delegacia e abrir um boletim de ocorrência para dar seguimento a essa denúncia.

Para além do assédio sexual, há outras condutas que são tipificadas como crimes por nossa legislação e que foram objeto de artigo específico. (7)

O jogo de sedução entre homens e mulheres sempre foi e deverá continuar sendo um encontro em que ambos têm a capacidade plena de escolha, concordância ou recusa. Isso automaticamente qualquer hierarquia, poder ou autoridade de um sobre outro.

Qualquer homem sabe que há limites que não devem ser ultrapassados, assim como toda mulher sabe o que, com quem e quando quer realizar seus desejos. Assim se realiza a ampla liberdade de ambas as partes, já que não há liberdade sem responsabilidade.

Neste sentido, as denúncias de assédio significam um momento de mudança civilizatória, necessário e importante para a evolução das relações sociais.

Mais do que nunca, porém, é necessária uma educação voltada para a igualdade de gênero e para a diversidade, visando o entendimento e a eliminação dos comportamentos sexistas que tanto mal fazem à vítima e à sociedade como um todo.

 

REFERÊNCIAS:

1 – GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Ed. L&PM, 2007. 304 p.

2 – TRINCA, Tatiane Pacanaro. “O corpo-imagem na “cultura do consumo”: uma análise histórico-social sobre a supremacia da aparência no capitalismo avançado”. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/CienciasSociais/Dissertacoes/trinca_tp_ms_mar.pdf. Acesso em janeiro/2018.

3 – BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Ed. Edições 70, 2007. p. 136

4 – https://oglobo.globo.com/cultura/analise-globo-de-ouro-2018-sera-lembrado-por-protestos-contra-assedio-sexual-22264123. Acesso em janeiro/2018.

5 – VENTURA, Denis Caramigo. Assédio sexual: um crime muito falado, mas pouco conhecido. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/9633/Assedio-sexual-um-crime-muito-falado-mas-pouco-conhecido. Acesso em janeiro/2018.

6 – Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40) – Art. 216-A – “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1(um) a 2 (dois) anos”.

7 – https://femininoealem.com.br/direito/advocatus/ausencia-de-consentimento-crimes-contra-a-liberdade-sexual/. Acesso em janeiro/2018.

8 – http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81706-cnj-servico-assedio-sexual-nao-e-cantada-e-tem-punicao. Acesso em janeiro/2018.

9 – http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/09/cantadas-nas-ruas-ampliam-debate-sobre-assedio-sexual-e-direitos-da-mulher-5302.html. Acesso em janeiro/2018.

10 – http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/a-mulher-esta-mais-sujeita-ao-assedio-em-todas-as-carreiras. Acesso em janeiro/2018.