Ah, se Figueiredo soubesse o que está acontecendo em Ilhéus…

Anna Lívia Rosa Ribeiro
Entre o espanto e o encanto, um olhar imaginário sobre a cidade que nasceu capitania e virou literatura.
Ah, se Figueiredo soubesse o que está acontecendo em Ilhéus… Talvez não acreditasse.
Se o velho donatário voltasse das brumas do tempo, ficaria dividido entre o espanto e o encanto. Aquele pedaço de terra que recebeu como sesmaria fértil, cercado de matas e rios caudalosos tornou-se uma cidade viva, que guarda sob o asfalto e o tempo os vestígios de sua origem colonial.
Hoje, Ilhéus é uma mistura de memória e movimento. É cidade que vive entre a brisa do mar e o cheiro doce do cacau e do chocolate, entre a lembrança do engenho e o rumor das ruas asfaltadas. É palco de histórias que atravessam séculos, de personagens que caminham entre o real e o literário, de lendas que insistem em permanecer no imaginário popular.

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Francisco Romero e, depois, Jorge de Figueiredo Correia jamais poderiam imaginar que suas doações e empreendimentos dariam origem a um núcleo urbano de tamanha relevância histórica, literária e cultural. Das primeiras aldeias ao Engenho de Santana, nasceu uma sociedade marcada pelo trabalho escravizado, pela economia do açúcar e, mais tarde, pelo brilho dourado do cacau.
O cacau, que tingiu de ouro as mãos e os sonhos de uma geração, transformou a paisagem e o destino da região. Trouxe riqueza, poder e conflitos. Fez surgir coronéis e cabarés, amores e tragédias. Em torno do fruto, ergueu-se uma cultura que moldou modos de falar, vestir, negociar, sonhar.
Se Figueiredo caminhasse hoje pelo centro histórico, veria casarões erguidos no tempo da opulência cacaueira. Veria igrejas e sobrados antigos resistindo à ação do tempo e um porto que, um dia, levou ao mundo o fruto que fez prosperar a região. Veria também o contraste inevitável dos tempos: o antigo e o moderno convivendo, muitas vezes, em descompasso.
Talvez se detivesse diante da Catedral de São Sebastião, observando as torres apontando para o céu como se ainda pedissem bênçãos sobre a terra do cacau. Talvez se deixasse levar pelas ruas do Pontal, onde o vento traz o cheiro da maresia e a lembrança dos antigos besouros e lanchas que cruzavam a enseada.
Talvez sorrisse ao ver os cruzeiros atracando no porto. Talvez se espantasse com o barulho dos carros, com a pressa das gentes, com os edifícios que se multiplicam no horizonte. Veria que Ilhéus já não é apenas a capitania dos tempos coloniais: é a terra onde o cacau floresceu e enriqueceu coronéis, onde Jorge Amado fez brotar personagens maiores que o mundo, onde o mar insiste em conversar com o passado, com as ruas que contam histórias de reis, donatários, indígenas, escravizados, coronéis e poetas.
Entre o real e o imaginário, Ilhéus tornou-se cenário e personagem. A cidade é, ao mesmo tempo, território e narrativa. É aqui que Gabriela ainda sobe no telhado com o cheiro da canela e do cravo, que Nacib ainda serve o chopp gelado no Vesúvio e que o Bataclan ainda guarda as risadas e os segredos.
Talvez Figueiredo se surpreendesse ao saber que Ilhéus tornou-se símbolo do imaginário mundial, eternizada pela literatura e pela força de sua gente. Veria, no entanto, que a antiga capitania, embora viva na memória, sofre com o descuido e o esquecimento. Veria casarões desbotados pela umidade e pela indiferença, monumentos que clamam por restauração.
Ainda assim, veria também resistência. Veria artistas, professores, estudantes e moradores que se esforçam para preservar o que resta do passado, reinventando a cidade com gestos cotidianos. Veria rodas de conversa, saraus, exposições, feiras literárias, manifestações populares. Ilhéus pulsa com o coração inquieto de sempre.
E, se olhasse com atenção, talvez se orgulhasse. Porque no traçado das ruas, nos casarões que resistem e no vaivém de quem passa, a terra que um dia foi capitania é hoje destino de quem vem, de quem passa, de quem fica, de quem escreve e reescreve Ilhéus com o próprio olhar.
Talvez, enfim, Figueiredo entendesse: sua donataria já não pertence aos tempos da Coroa. Pertence à memória, à literatura. Virou poesia, legado vivo de um povo inteiro.
E talvez, antes de voltar às brumas da história, o velho donatário se detivesse diante do mar, observando o encontro das águas do Cururupe com o Atlântico. Ali, quem sabe, perceberia que o tempo não apaga nada, apenas transforma. Porque em Ilhéus, o passado não é apenas lembrança: é matéria viva, reinventada todos os dias pelas mãos de quem ainda acredita na força da cultura, da palavra e da beleza.
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Anna Lívia Rosa Ribeiro é ilheuense, mãe, avó, escritora, pedagoga, especialista em Educação Infantil, mestra em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Gestora em Turismo, sócia-diretora da ViaDestino, agência de viagens.











