Emiron Gouveia

“Dinheiro” é um curta-metragem que, em seus breves 10 minutos, mergulha profundamente nas dinâmicas complexas das relações humanas, especialmente quando estas são colocadas à prova pelo poder transformador do dinheiro. A história apresenta um casal de andarilhos, já na maturidade, que decide invadir uma casa abandonada, tomando posse do espaço como refúgio momentâneo. Até esse ponto, o filme constrói uma imagem de intimidade e cumplicidade, ressaltando a força da parceria entre dois indivíduos que vivem à margem da sociedade.

No entanto, ao descobrirem uma pequena quantia de dinheiro, o enredo toma um rumo inesperado. O discurso visual e as interações verbais do casal mudam drasticamente, revelando as tensões que até então estavam latentes, mas escondidas sob a máscara de solidariedade. O dinheiro, mesmo que em pequena quantidade, funciona como um catalisador para desenterrar ressentimentos, medos e ambições não verbalizadas. O espectador é confrontado com uma reflexão incisiva sobre o quanto o valor material pode distorcer a percepção do outro e destruir as bases de uma relação.

O curta utiliza uma linguagem minimalista, tanto nos diálogos quanto nas ações dos personagens, para explorar temas complexos como possessividade, desconfiança e a fragilidade das relações. O uso de símbolos – a casa abandonada como metáfora para a vulnerabilidade emocional do casal e o dinheiro como agente de desequilíbrio – reforça a mensagem de que, muitas vezes, é o contexto de escassez que define as reações humanas, e não necessariamente o valor em si.

O final trágico sublinha a crítica presente no discurso: a fragilidade das relações humanas, quando confrontadas com o desejo de posse, pode levar à destruição mútua. O curta questiona se, diante da promessa de segurança financeira, a verdadeira intimidade pode resistir, ou se as relações humanas são, no fim, moldadas e corrompidas pelo poder do dinheiro.

Essa análise de discurso expõe como o materialismo não apenas interfere, mas redefine as conexões interpessoais, levando o espectador a refletir sobre a natureza do amor e da confiança em um mundo onde até os laços mais fortes podem ser corroídos pelo desejo de controle sobre o outro.

Além da análise baseada no discurso materialista e das dinâmicas de poder no relacionamento, outros olhares podem emergir ao observar “Dinheiro” sob diferentes perspectivas:

1. Análise psicológica: O curta pode ser visto como uma exploração do comportamento humano diante de mudanças súbitas nas condições de vida. O achado do dinheiro representa a ruptura do equilíbrio psicológico no casal. Aqui, o foco estaria em como as emoções, como a ganância, o medo e a insegurança, surgem rapidamente em situações de escassez. A transformação no comportamento dos personagens poderia ser interpretada à luz de teorias psicanalíticas, onde o dinheiro age como um “objeto de desejo” que desvela neuroses latentes e fragilidades emocionais. Assim, as reações do casal seriam reflexos de ansiedades não resolvidas ou traumas de um passado de privação.

2. Crítica social: A obra também pode ser lida como uma crítica às condições de vida de pessoas marginalizadas, como andarilhos ou indivíduos sem posse. O dinheiro, embora pequeno em valor absoluto, simboliza a luta por sobrevivência e a escassez econômica que define a vida dessas pessoas. Sob essa lente, o curta questiona como a sociedade trata a exclusão e como aqueles que vivem à margem são forçados a colocar em risco até mesmo os relacionamentos pessoais para tentar alcançar algum senso de segurança material. A transformação do casal seria, então, uma denúncia da precariedade social que condiciona comportamentos de desconfiança e rivalidade, onde a própria sociedade empurra as pessoas a um dilema moral.

3. Olhar existencialista: Outro ponto de vista possível é o da filosofia existencialista, que poderia interpretar o curta como uma metáfora para a condição humana. A casa abandonada seria um símbolo da busca por um sentido em um mundo caótico e sem posses; o dinheiro encontrado, uma representação ilusória de controle ou propósito. O casal, ao romper sua relação de cumplicidade por algo tão efêmero, expõe a fragilidade da vida e das conexões em um universo que, no final das contas, não oferece garantias. O final trágico sublinha a inutilidade de se apegar a algo tão volátil como o dinheiro, reforçando a noção de que o ser humano está condenado a viver com a angústia da escolha e da busca por sentido.

4. Perspectiva feminista: A relação do casal pode ser examinada à luz de questões de gênero e poder. Como o dinheiro afeta a dinâmica de gênero? Algum dos parceiros exerce mais controle ou influência sobre o outro depois da descoberta? A mudança de comportamento pode refletir desigualdades subjacentes na relação, onde o dinheiro reforça ou desestabiliza papéis de gênero tradicionais. A perspectiva feminista poderia investigar se a narrativa reforça ou questiona estereótipos sobre dependência econômica, poder e autonomia dentro das relações.

5. Simbologia do espaço: A casa abandonada pode ser analisada sob um viés arquitetônico ou geográfico, representando não apenas um abrigo temporário, mas também um espaço de transformação e conflito. O espaço físico pode simbolizar tanto proteção quanto confinamento, sendo uma metáfora para a relação em si. A invasão e a apropriação desse espaço podem ser vistas como uma expressão de resistência e autonomia do casal, mas também como um prenúncio do colapso das fronteiras emocionais entre eles.

Cada um desses olhares oferece novas camadas de interpretação, enriquecendo a análise do curta-metragem e permitindo ao espectador ver além da simples narrativa de ganância e conflito.

Trilha sonora
Em Dinheiro, o silêncio dos personagens parece falar mais do que palavras jamais poderiam. Em vez de diálogos densos ou monólogos explicativos, o curta-metragem opta por uma ausência quase total de conversas, permitindo que os corpos, olhares e gestos conduzam a narrativa. A casa abandonada, o casal andarilho, o encontro com o dinheiro – tudo se desenvolve em um cenário onde o som das palavras é substituído por outra presença: a trilha sonora.

A música, cuidadosamente construída, preenche o vazio do que não é dito. Ela é o fio condutor da tensão crescente entre os personagens, traduzindo o que as bocas silenciam. Enquanto eles vasculham a casa, a trilha surge quase como um terceiro personagem, uma testemunha silenciosa da cumplicidade que, pouco a pouco, se desmancha com a descoberta do dinheiro. A música, inicialmente calma e sutil, começa a mudar de ritmo, a ganhar camadas e intensidade, à medida que a relação dos dois se transforma.

Em cada nota ou melodia, sentimos o impacto do achado inesperado – aquele dinheiro que não precisaria de palavras para explicar sua força transformadora. A trilha capta os sussurros da desconfiança, o peso da ambição e a fragilidade de uma parceria outrora sólida. Não há gritos ou discussões verbais; a música faz o papel de narrar a ruptura. Cada mudança na harmonia parece acompanhar o afastamento do casal, como se a trilha fosse o pulso emocional da história, acentuando a tragédia que se avizinha.

Esse uso da trilha sonora como voz, como guia emocional, nos leva a uma reflexão: nem sempre precisamos de palavras para entender a natureza humana. Muitas vezes, o que não se diz ecoa mais alto, especialmente quando os sons ao redor captam as nuances do não-dito. No caso de Dinheiro, a música não é só pano de fundo, mas o coração pulsante que faz com que o espectador sinta o que os personagens não podem ou não querem expressar.

Ao final, quando o desfecho trágico se aproxima, a trilha nos envolve de tal maneira que compreendemos, sem precisar ouvir uma única palavra, o que levou os personagens a este ponto. O silêncio deles não é vazio; é preenchido pelo som meticuloso que acompanha suas escolhas. Em Dinheiro, a ausência de diálogo não deixa lacunas, porque a música fala.

Emiron Gouveia é `patrimônio` da Uesc e um dos atores do filme