Joana Angélica Guimarães

Joana Angélica Guimarães

Por Juliana Sayuri | para o The Intercept

Faz 29 graus em Itabuna, no sul da Bahia. Joana Angélica Guimarães da Luz, 61 anos, se dirige diariamente ao km 39 da BR 415, a Rodovia Ilhéus – Vitória da Conquista. Ali, num prédio antigo alugado na Vila de Ferradas, bairro pobre na periferia de Itabuna, fica a reitoria da Universidade Federal do Sul da Bahia, a federal que mais perdeu dinheiro com os cortes do Ministério da Educação.

Segundo a Andifes, a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, o orçamento da UFSB em 2019 caiu para menos da metade: o valor inicial de R$ 31,5 milhões foi para R$ 14,5 milhões. O primeiro efeito do corte é sentido pelo corpo: apesar do inverno quente, em que a temperatura chega a 27 graus, a ordem é deixar o ar-condicionado desligado em todas as unidades. Nos últimos dias, me disse a reitora, eles tiveram “sorte”: choveu e ao calor deu uma trégua.

Luz é a primeira mulher negra eleita reitora de uma universidade federal. Empossada há pouco mais de um ano, ela teme não conseguir sequer concluir a construção dos campi da universidade, inaugurada em 2014. São três: Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas. Todos em obras. Todas, paradas.

Luz nasceu nos arredores de Itabuna. Filha de trabalhadores rurais, ela migrou do nordeste ao sul do país para estudar: primeiro, fez graduação em geologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seguida pelo mestrado na Universidade Federal da Bahia e pelo doutorado na Cornell University, em Nova York. A partir de 2012, participou ativamente da construção do projeto político-pedagógico da UFSB, declaradamente pautado por ideias de intelectuais como Anísio Teixeira, Milton Santos e o temido Paulo Freire. Segundo Luz, a UFSB foi idealizada como uma universidade de inclusão: a jovem federal abriga 4,5 mil alunos de graduação e pós-graduação – cerca de 80% deles de famílias de baixa renda.

O iminente virou imediato. “Universidades estão dizendo que vão parar as atividades, e a nossa está incluída. Não é tom de ameaça, não é retaliação. É realidade: não há condições concretas para continuidade”, relata a reitora. A administração está precisando escolher quais contas e contratos pode honrar e quais inevitavelmente vai pagar com atraso. “Estamos chegando ao ponto de paralisar tudo.”

Em entrevista ao Intercept, Luz fala sobre essas escolhas e a expectativa de liberação de recursos extras em setembro. Se não entrar mais dinheiro no caixa, a situação será “o caos”.

 

 

 

Intercept – Hoje, 15 de agosto, como está a UFSB?

Joana Angélica Guimarães da Luz – Hoje temos uma despesa de R$ 1,2 milhão por mês, mas recebemos R$ 860 mil. Estamos literalmente precisando escolher quais contas a gente paga e quais a gente atrasa, quais contratos a gente honra e quais não. O campus fica em uma cidade muito quente, mas definimos desligar o ar-condicionado para economizar energia elétrica. Os projetos de pesquisa estão em stand-by. Também temos diversas obras paradas, pois não temos recursos para pagar a empreiteira. A ordem direta é agora é suspender as obras, pois não há como arcar com os custos – mas ainda estamos discutindo com o MEC. Até lá, estamos nesse jogo de atrasar aqui, reduzir ali e ir levando para fechar o mês.

Como vocês têm feito essas escolhas?

Temos contratos com trabalhadores terceirizados, o pessoal de vigilância, transporte e limpeza. Abrimos licitação e contratamos empresas terceirizadas, a partir de uma estimativa do número de funcionários necessários por metro quadrado de área, como diz a legislação. Estes são os contratos que estamos priorizando o pagamento, pois, se não pagarmos, os trabalhadores não recebem salário. A pior decisão é deixar as pessoas sem salário, afinal, elas dependem disso para a própria sobrevivência. Depois, temos contas de água, energia, despesas com manutenção predial. Se atrasamos, negociamos com o fornecedor por um mês, dois meses, mas e depois? A companhia de energia vai nos acionar, vai cortar a luz. Já estamos com faturas em atraso.

Até agora, a maioria está compreendendo que a falta de condições de pagamento de suas obrigações de contrato não depende de nós, da gestão da universidade, mas que é uma questão de conjuntura de um contingenciamento geral das universidades federais. Há uma compreensão de que estamos vivendo um momento atípico, pois não estamos recebendo aquilo que tinha sido acordado anteriormente.

Para nós, o crucial é o andamento das obras. A infraestrutura implica a sobrevivência da universidade, quer dizer, da própria estrutura física onde nós vamos atuar. Como somos uma universidade muito nova, ainda há muito a construir. São três campi, que precisam de investimento na infraestrutura básica. Não temos sede própria da reitoria – atualmente trabalhamos num prédio alugado. Temos áreas doadas e imóveis adaptados para salas de aula, reitoria e pró-reitorias, mas já temos um déficit de salas de aula nos três campi.

Novos alunos vão chegar e não sei como vamos recebê-los no próximo ano. Fizemos um planejamento das obras diante de um orçamento aprovado no ano passado. Esse orçamento não se concretizou, pois foi contingenciado em abril. Estamos em agosto, esperando que essa situação se reverta em setembro. Caso contrário, teremos problemas sérios na manutenção de uma série de atividades. Dias atrás, parlamentares e representantes da Andifes se reuniram com o ministro [Abraham Weintraub] e ficou sinalizada a possibilidade de descontingenciamento de recursos a partir de setembro. Precisamos disso para continuar.

Se o descontingenciamento não se concretizar, a universidade pode parar?

Sim. Universidades estão dizendo que vão parar as atividades, e a nossa está incluída. Não é tom de ameaça, não é retaliação. É realidade: não há condições concretas para continuidade. Se não tivermos recursos liberados em setembro, não temos como manter uma série de serviços essenciais, como a energia elétrica, a luz! Como vamos ter aulas se não há luz? Como vamos abrir vagas para novos alunos se não há salas de aula? É uma questão concreta, de estrutura física. Estamos chegando ao ponto de paralisar tudo.

Esta universidade começou em uma sala de 30 metros quadrados, cedida por uma associação, onde passei um ano articulando os contatos e os acordos para instalar a universidade, buscando espaços, fazendo parcerias com as prefeituras. Nós estamos construindo a universidade do zero. A situação atual nos atrapalha muito. Três obras em andamento deveriam ser concluídas ao longo de três anos, mas o cronograma deste primeiro ano já está bastante comprometido. Uma delas, por exemplo, é a reitoria, no campus de Itabuna. A previsão era mudar para a nova sede no primeiro semestre de 2019 – é um prédio antigo no centro da cidade, cedido pelo Tribunal de Justiça da Bahia, que precisa de reforma. Atrasando este prédio, atrasam as outras obras. Também tínhamos previsto a construção do prédio do núcleo pedagógico, que está pronto, mas falta a infraestrutura, a via de acesso, água, energia. Nós fomos diminuindo o ritmo das obras, mas agora não tem mais como diminuir. É parar mesmo.

Diferentemente do que dizem, nós temos responsabilidade administrativa e temos todo um planejamento, feito por pessoas competentes e comprometidas. Todo o planejamento de uma universidade é feito a partir do orçamento e, mês a mês, temos uma liberação do financeiro. Nós planejamos: a partir do ano tal, teremos X alunos; considerando a entrada anual, precisamos de Y salas a mais. Também deveríamos ter nosso quadro [de funcionários] completo até 2020. Foi previsto um quantitativo de servidores, técnicos e docentes, mas até agora temos menos da metade. Planejamos os cursos com o número X de docentes, mas não temos todos os professores, porque os concursos não foram liberados. Quer dizer, não tem sala, não tem docente.

A restrição financeira é mais cruel para as federais mais jovens?

Sim. Certamente as mais antigas enfrentam problemas. As mais consolidadas sofrem com custeio e manutenção de prédios mais antigos e renovação de laboratórios, por exemplo. Mas as mais jovens sofrem, pois ainda estavam no processo de construir esse arcabouço inicial. No caso da UFSB, além do custeio, obviamente, precisamos de investimento alto de infraestrutura. Ainda somos pequenos. Deixamos de comprar equipamento para montar um laboratório por falta de verba. Pesquisas podem atrair investimento privado, mas como vou atrair investimento privado se não tenho um laboratório minimamente equipado para uma pesquisa mais avançada? Se eu não tenho o que oferecer, como vou vender uma ideia para a iniciativa privada?

Tínhamos um edital aberto de apoio a projetos de extensão e pesquisa na universidade. Como somos uma universidade nova, alguns professores já têm projeto com financiamento externo, mas muitos estão em início de carreira e, portanto, ainda não têm um portfólio de pesquisa para buscar fomento. Além do mais, as agências de fomento têm diminuído recursos também. Então, elaboramos editais de pesquisa para os jovens pesquisadores aqui. Mas, como precisamos reduzir recursos de todas as áreas, suspendemos os que seriam destinados a projetos. E são projetos importantes para a região, com potencial de atrair novos recursos para nós. Um deles, por exemplo, é de ervas medicinais, originárias da Mata Atlântica, trabalhando junto ao entorno da universidade, com a perspectiva de gerar renda para as comunidades ao redor. Outro projeto, do curso de engenharia florestal, é sobre a produção de cacau num sistema chamado cabruca – o cacau é produzido na sombra, e as árvores precisam ser mantidas, quer dizer, um modelo de uso sustentável da floresta. Os estudos, então, vão nesse sentido: que iniciativas econômicas a gente pode ter para que essa floresta se mantenha de pé e, ao mesmo tempo, dê renda para quem vive na região? São projetos promissores que, tendo um investimento inicial, podem atrair mais investimentos.

O discurso desta onda anti-intelectual, que imagina universidades como antros de ‘balbúrdia’, afasta investidores da iniciativa privada?

Universidades têm imensa importância na construção do conhecimento, na formação de milhares de profissionais de todas as áreas. É um patrimônio importantíssimo para o Brasil: o conhecimento é um bem imaterial. E é problemático o impacto de interromper o andamento das atividades ou transformar universidades de uma forma tal que a gente não tenha liberdade de construção do conhecimento ou discussão sobre os vários vetores de desenvolvimento.

Dizer que professor de universidade pública só trabalha oito horas por semana é um dos maiores absurdos que já ouvi [no dia 17 de julho, o ministro Abraham Weintraub disse que professores com dedicação exclusiva das universidades federais recebem um salário equivalente a R$140 mil por mês, já que passam “apenas” oito horas semanais em sala de aula]. Docentes não estão trabalhando só em sala de aula – todos têm carga cheia, a semana inteira. O ensino é um dos pilares da universidade. Também há extensão e pesquisa.

Há declarações tão absurdas que às vezes a gente acha que é piada. A questão da balbúrdia, que os universitários são drogados e pelados, é uma delas. Estou na universidade a minha vida inteira, como estudante, professora, enfim. Fiz meu doutorado nos Estados Unidos e não vejo nenhuma diferença em termos de comportamento estudantil entre as universidades americanas e o que acontece no Brasil. Que balbúrdia é essa? Na UFSB, os alunos estão na sala de aula, os professores dando aula, todo mundo trabalhando. Esse é nosso dia a dia. Quem diz esse tipo de coisa não sabe o que é uma universidade de fato. É um espaço de crítica, de todas as críticas possíveis, de todos os matizes ideológicos. É um espaço de discussão de ideias, divergentes ou convergentes, onde se estimula a capacidade de pensar o mundo e de criar. Se isso é balbúrdia, eu quero continuar fazendo balbúrdia.

Como avalia a atual gestão na ciência?

Posso até me comprometer, mas vou dizer: não há gestão de ciência e tecnologia no Brasil hoje. Entende-se ciência e tecnologia a partir do pressuposto de que elas devem servir ao capital. Ponto. O Brasil não investe em conhecimento científico e tecnológico, e pagamos um preço alto, porque acabamos ficando à mercê do que é desenvolvido em outros países. E isso só abordando a questão de mercado. Tem também a questão social, que deve que estar embutida para pensar o desenvolvimento do país.

O Future-se, lançado agora pelo governo federal, tem como carro-chefe a arrecadação de recursos, a chamada liberdade de arrecadar. A universidade já faz isso: há convênios com empresas privadas para o desenvolvimento de determinados projetos. O que está ali no programa, porém, é uma ideia da universidade que esteja única e exclusivamente a serviço do mercado. É perigoso deixá-la à mercê das corporações e dos empresários.

Muitas vezes, não há como medir de imediato o impacto de pesquisa, mas ela pode se transformar em uma tecnologia importante no futuro. Hoje, podemos não enxergar o potencial, mas a ciência é dinâmica e amanhã uma pesquisa básica pode ser a chave para avançar uma pesquisa aplicada. O investimento público deve se manter fortemente nas universidades brasileiras. Lá fora, nós sabemos, o investimento privado é pequeno: nos Estados Unidos e na Europa, a maior parte dos investimentos nas universidades vêm dos cofres públicos. [Tem] Quem diz “ah, mas as universidades brasileiras não estão entre as top do mundo”. Como vão estar se não têm o nível de investimento que as outras top do mundo têm?

A universidade corre risco de sofrer uma mudança muito rápida sem a discussão devida sobre o que é, afinal, uma universidade, qual é seu papel, qual é sua dinâmica.

Qual é o papel de uma universidade federal no sul da Bahia?

A expansão das universidades federais foi fundamental no sentido de dar oportunidade a jovens de regiões mais remotas ou mais afastadas dos grandes centros, principalmente jovens de baixa renda. Quem tem dinheiro consegue mandar o filho estudar em qualquer lugar, mas quem não tem… No sul da Bahia, que não é área remota, mas atrativa inclusive do ponto de vista turístico, ainda assim os jovens não viam a universidade como uma possibilidade. Levar a universidade para perto do estudante de baixa renda foi muito importante. Digo por experiência própria: fiz graduação, pós-graduação e hoje sou reitora de uma universidade federal graças a um infortúnio da minha infância. Meu pai ficou desempregado, e a família precisou mudar para Salvador. Se não tivéssemos saído da zona rural de Itabuna, eu não teria condições de estudar na época.

Quando a universidade foi anunciada aqui, visitamos escolas e fizemos audiências públicas nas cidades da região – são 48 municípios no entorno dos três campi. Um dos alunos do ensino médio disse em um desses encontros: “Mas pra ser frentista do posto de gasolina, não preciso estudar mais do que já estudei”. Quer dizer, a perspectiva de futuro dele chega ali, no posto de gasolina da cidadezinha dele. A chegada da universidade deu outra dimensão de possibilidades – e ele e outros jovens como ele entraram. Nosso maior número de alunos é da região, incluindo indígenas, quilombolas e quem trabalha nos assentamentos também.
Isso não significa que as pessoas devam sair e nunca mais voltar para suas cidades. Sempre digo que é importante que as pessoas se qualifiquem e que depois saibam que podem ir aonde quiserem – ficar, ir, voltar. Para que eles possam contribuir com o desenvolvimento econômico e social do espaço onde eles foram criados, onde eles viveram ou onde eles vivem. Não dá pra gente fazer inclusão para transformar o incluído num excluidor.

A UFSB é a universidade da inclusão. Trabalhamos nessa perspectiva de trazer esses jovens pra cá. Precisamos trazê-los para dentro da universidade para que eles estudem – e para que a gente aprenda com eles.

Como se sente como a primeira mulher negra eleita reitora de uma universidade federal?

A primeira foi Nilma Lino, reitora pro tempore [temporária] da UNILAB. Eu fui a primeira eleita e, até o momento, a única.

Tenho dois sentimentos contraditórios sobre essa condição. O primeiro é a alegria da possibilidade de ser uma referência para meninas e mulheres negras mundo afora. Que elas saibam que uma mulher negra pode ter uma posição de destaque e ocupar qualquer cargo, qualquer posto no país. É um reconhecimento intelectual de pessoas negras. O segundo é a tristeza pelo fato de uma mulher negra assumir uma reitoria ser notícia por ser tão raro. Que a gente ainda admire e celebre algo que não deveria ser raro.

Sou dura na queda. Sou forte e firme no trabalho. Mas, ultimamente, tenho me sentido sem forças. Ir a Brasília tem sido um trabalho doloroso. Sempre fui otimista, mas estou enfraquecida nesse sentido. O país está uma praça de guerra, como se o contraditório fosse proibido. Confesso que estou me sentido um tanto… desanimada não é a palavra, pois sinto que não tenho direito de desanimar agora. Precisamos respirar fundo, buscar forças e batalhar. Não dá pra entregar os pontos.

Por fim, diria que a UFSB hoje está no sinal amarelo ou avançou o vermelho?

Estamos entrando no vermelho. Se em setembro recebermos recursos no mesmo patamar que em agosto, aí estaremos definitivamente no vermelho, piscando e bastante alerta. Ainda temos fôlego, mas já não temos condições de pagamento de todos os contratos neste mês – vamos pagar alguns e esperar o dinheiro do próximo mês para quitar o que ficou de agosto e mais as contas de setembro. Agora, se não tiver mais recursos no próximo mês, aí, sim, já é o caos. Se continuar assim, fechar a universidade é o último passo.