Debora Spagnol

debora 2“Queda Livre”, o primeiro episódio da terceira temporada da série distópica da tecnologia “Black Mirror”, da Netflix, mostra a vida de uma mulher baseada nas redes sociais. Nela, as pessoas são avaliadas e avaliam o tempo todo: dos lugares que frequentam à roupa que vestem, passando pelos alimentos que consomem, os cidadãos podem acompanhar os pontos que ganham ou perdem. E tal pontuação é utilizada para fornecer ou vetar acessos aos serviços públicos ou privados, além de tornar as pessoas populares ou impopulares. Como a arte imita a vida, a personagem principal vive um verdadeiro drama na busca por ser a mais popular.

Ao contrario da ficção, no mundo atual o conceito se inverte: a vida imita a arte e há países em que informações pessoais já são utilizadas para segregar pessoas. Moradores de Xiamen, na China, por exemplo, ouvem a seguinte gravação, quando tentam ligar para pessoas que constam na lista negra de autoridades locais: “Olá. A pessoa para quem você está ligando é considerada desonesta pelo governo. Caso deseje continuar, isso poderá afetar sua posição no ranking do Sistema de Crédito Social.”

A previsão do governo chinês é de que no ano de 2020 todos os quase 1,4 bilhão de cidadãos chineses estejam cadastrados nesse sistema, submetidos a uma pontuação fixada através de um algoritmo e após analisada uma série de dados pessoais, divididos em sociais (como formação acadêmica, ficha de antecedentes e comportamento no trânsito), tradicionais (pagamentos de impostos, faturas de cartão de crédito, cumprimento de ordens judiciais) e “online” (interação com amigos nas redes sociais, confiabilidade das postagens, comportamento em jogos de internet). Assim, quem tiver pontuação alta terá benefícios como passar sem revista nas vigilâncias dos aeroportos e acesso a melhores planos de saúde; em compensação, quem tiver baixa pontuação poderá sofrer restrições como proibição de viajar de avião, menores descontos em produtos e bloqueio de acesso a determinados serviços sociais. (1)

Se por um lado o sistema de pontuação pode gerar resultados imprevisíveis, influenciando a própria maneira das pessoas se relacionarem – quem tiver mais pontos será mais desejado como amigo ou parceiro – em contrapartida a adesão dos cidadãos tornar-se-á inevitável: dos financiamentos estudantis à contratação de alugueis, quase todos os serviços exigem que os usuários estejam cadastrados.

Embora de forma mais limitada, o sistema de pontuação já é aplicado no Brasil: há empresas que trabalham com a pontuação de crédito, ou “credit score” fornecendo subsídios para empréstimos financeiros, ou seja: auxiliam o credor a decidir se vale a pena ou não emprestar dinheiro para alguém.

O cálculo é simples: através de fórmulas matemáticas é atribuída uma nota para cada candidato, que assim sugere menor ou maior risco para o investidor, demonstrando se ele tem boas ou más chances de honrar um empréstimo. Para o cálculo da nota são considerados o histórico bancário, idade, gênero, profissão, atividades no Facebook, dívidas anteriores, círculo social, compras recentes e demais informações coletadas das atividades diárias realizadas.

Combinadas, essas informações são suficientes para definir se uma pessoa está propensa a gastar mais, pegar um empréstimo ou honrar uma dívida. Informações detalhadas – como estado civil – são importantes para prever o comportamento do consumidor: pessoas solteiras podem ser mal vistas por possíveis credores, derrubando a nota. Por outro lado, pessoas sem emprego fixo ou conta em banco podem ter uma pontuação alta se seguirem determinados padrões, tendo mais fácil acesso ao financiamento. Se o candidato ao empréstimo desejar aumentar ainda mais sua pontuação (e seu crédito), pode autorizar a empresa a coletar mais informações sobre si (renunciando ainda mais à sua privacidade), autorizando acesso aos seus parceiros e amigos das redes sociais. Assim, se as companhias forem bons  pagadores, sua pontuação aumenta.

Embora seja um dos segmentos que mais cresce no mercado, pois engloba empresas de todos os tamanhos, a metodologia exata para se fixar o “credit score” ainda é desconhecida. Não se sabe, por exemplo, qual a relevância da idade para fixar a nota e o provável risco de inadimplência. Ser mais velho é mais importante para avaliação do risco do que ter maior patrimônio ? Qual o peso do seu salário, estado civil ou estabilidade no emprego ? Difícil definir.

O que se sabe, porém, é que para atribuir a nota as empresas se abastecem do que hoje há de mais valioso: informação. E ela vem dos locais mais diversos possíveis: das redes sociais até empresas de crédito parcerias, passando por órgãos públicos. Depois de abastecidas de informações, as empresas fazem o cruzamento dos dados e os juízos de valor, estabelecendo assim o “credit score” do usuário.

Mas o termo não se trata de uma prática nova, já que a utilização de um índice para medir a capacidade de pagamento de candidatos a empréstimo sempre existiu. A diferença é que se ampliou e sofisticou a base de informações e a forma de análise do risco. Se antes contavam como pontos positivos a estabilidade no emprego, a renda, o estado civil e a idade, atualmente informações como perfis das redes sociais, forma de utilização do cartão de crédito e postagens no LinkedIn podem ser decisórios para uma boa pontuação.

Nesse novo cenário, surgem profissionais como os “stalkers financeiros”, que são as pessoas encarregadas de vasculhar a vida das pessoas buscando informações que possam sinalizar possíveis calotes. Há ainda os “data brokers”, empresas ou profissionais que vasculham fontes governamentais, redes sociais, cadastros de outras empresas e qualquer canto da internet onde uma informação útil possa estar disponível para montar bases de dados de informações pessoais. Separadas, as informações coletadas têm pouco valor; é quando são reunidas e organizadas em padrões que elas se tornam mais interessantes para as companhias que contratam esses serviços. A lista de clientes é ampla e vai de instituições financeiras e de seguro até empresas de telecomunicações, campanhas eleitorais e mesmo órgãos governamentais. (2) No Brasil, são exemplos as empresas Serasa Experian e Acxiom.

A princípio, essa combinação de informações praticada pelas empresas para atribuir a alguém uma nota para futuro crédito não constitui nenhum ilícito. Ocorre que classificar as pessoas como possíveis caloteiras em um processo sem qualquer transparência pode resultar em efeitos graves, já que uma decisão tomada pelas empresas de crédito pode ter efeitos que vão muito além de uma compra não realizada ou um investimento que deixa de acontecer. Ao lidar com uma infinidade de informações e dados pessoais, muitos deles íntimos, o sistema pode eventualmente trazer efeitos invasivos e danosos ao consumidor – além de injustos.

A prática do “credit score” no Brasil não possui legislação específica, mas está limitada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e Lei 12.414/2011, conhecida como “Lei do Cadastro Positivo”. (3 e 4) Portanto, é permitido que as empresas tenham um cadastro com o histórico de pagamento de seus clientes, mas é proibido que o uso de informações excessivas ou sensíveis, como origem social e étnica, condições de saúde e orientação sexual. Porém a ausência de transparência sobre o uso dessas informações para a análise do “credit score” prejudica tal controle, já que as referidas leis não detalham como deve ser feito o tratamento de dados dos cidadãos. Assim, é impossível saber se informações sensíveis ou pessoais pesaram na hora de negar o crédito a alguém. A metodologia para calculo da nota, inclusive, está protegida pelo sigilo, sendo considerada segredo empresarial, conforme art. 5º, IV, da Lei 12.414/11.

Revoltados com a existência de um sistema de pontuação, consumidores ajuizaram milhares de ações pleiteando indenização por danos morais que, em sede de Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2014, resultou na fixação de alguns parâmetros: a) O “credit score” foi considerado um sistema lícito e não depende de consentimento do cidadão para ser realizado; b) o cidadão pode solicitar a fonte dos dados e as informações pessoais valoradas, através de um instrumento jurídico chamado “Habeas Data”; c) é garantida a possibilidade do consumidor checar a veracidade das informações e retificar eventuais dados incorretos.

Devem ainda ser limitadas as limitações temporais, de cinco anos para o cadastro negativo e de quinze anos para o histórico de crédito.

Ressalte-se que, por não se configurar como um legítimo banco de dados de consumidores, mas uma metodologia utilizada para o cálculo do risco de crédito, a mera existência de nota desfavorável ao consumidor não dá margem à indenização por dano moral.

Porém, o desrespeito aos limites legais na utilização do sistema “credit score” configura abuso de direito, previsto no art. 187 do Código Civil (5), atraindo a aplicação das sanções legais, especialmente a indenização por danos morais.

Caso o consumidor, desconhecendo informações restritivas, tenha negado acesso ao crédito, deve providenciar o protocolo de requerimento prévio à instituição financeira para a obtenção de dados ou, no mínimo, a tentativa de obtê-los perante o detentor, inclusive, fixando prazo razoável para o atendimento. Caso negado, poderá ajuizar a ação competente, visando obter em juízo as informações sonegadas.

 

REFERÊNCIAS:

1 – LIMA, Mariana. Link – O Estadão. Disponível em: https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,como-em-episodio-da-serie-blackmirror-china-vai-dar-notas-a-cidadaos,70002268857. Acesso em 07 jun.18.

2 – DIAS, Tatiana e NATUSCH, Igor. Vice. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/bjd883/como-empresas-financeiras-stalkeiam-suas-informacoes-online>. Acesso em 07 jun.18.

3 – Íntegra da Lei 8.078/90 disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8078.htm>. Acesso em 07 jun.18

4 – Íntegra da Lei 12.414/11 disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/L12414.htm>. Acesso em 07 jun.18.

5 – Código Civil – Lei nº 10.406/02, art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.