Mazé Torquato

Aos 95 anos — ou, oficialmente, 93 —, cansado de tantas jornadas, vai aos poucos se despedindo, no silêncio doloroso dessa travessia.

De longe, penso nele: no coração fatigado, nos órgãos marcados pelo tempo. Recordo os dias em que trabalhávamos juntos no pequeno comércio da minha Glória, a de Dourados. Ele não gostava do balcão, dizia que não tinha “jeito para o comércio”. Talvez fosse uma forma de esconder sua pouca leitura. O que ele amava mesmo era o sítio: levantar-se com o sol, recolher-se ao entardecer, vivendo no compasso da terra.

Era mamãe quem insistia na ida para o vilarejo, sonhando com mais “leitura” para os filhos, uma escola melhor do que a da beira de estrada, onde a professora tinha apenas concluído os quatro anos de primário.

Meu pai, porém, tinha outra inteligência: a das mãos que inventam. Criou, ainda no sítio, uma máquina manual para debulhar milho, outra para fazer garapa etc. No vilarejo, tornei-me seu braço direito: cuidava de contas bancárias, de faturas… até entrei no curso de contabilidade para poder ajudá-lo melhor. Ele queria que eu assumisse as rédeas do comércio, mas, sem perceber, eu já recusava.

O comércio, naquela época, era uma escravidão: doze horas por dia, sete dias por semana. Sem feriado, sem tempo para os meus aprendizados, sem espaço para meus sonhos. Queria ajudá-lo a sustentar a família, mas também precisava cuidar do meu futuro. Sonhava com horizontes mais largos. Precisava aprender, aprender sempre.

Somente depois dos vinte anos, bem maduros, que recusei de vez. Fiz o que pude, mas a família não era minha responsabilidade. Tarde, mas alcei meu próprio voo.

Ele também voou. Os filhos estavam “crescidos” — mas não tanto. Ainda precisavam de apoio que ele não sabia dar. Quando percebi, eu já tinha atravessado o oceano, ocupada com outros mundos. A conta recaiu sobre meu irmão mais jovem, já desaparecido. Esse apoio que tantas vezes precisamos, mas nem sempre sabemos oferecer, ele não teve como deveria.

E assim, a roda continua a girar.

Mazé Torquato Chotil – Jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP antes de chegar em Paris em 1985. Agora vive entre Paris, São Paulo e o Mato Grosso do Sul. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e é fundadora da UEELP – União Européia de escritores de língua Portuguesa. Escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.