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livros do thame




Daniel Thame, jornalista no Sul da Bahia, com experiência em radio, tevê, jornal, assessoria de imprensa e marketing político danielthame@gmail.com

julho 2025
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:: ‘Vania Fagundes’

Minha infância tem cheiro de cacau

 

Vânia Fagundes

 

Chamávamos de armazém o depósito onde as sacas de cacau eram empilhadas umas sobre as outras.

Àquela época, meu pai gerenciava uma empresa de importação e exportação de cacau. O que para ele era trabalho, para mim e o meu irmão era só diversão.

Nos sábados passávamos horas brincando de subir nas sacas até chegar ao topo delas. Parecíamos gatos praticando escaladas.

Saltávamos de uma pilha para a outra com tamanha destreza que nunca nos estropiavamos no chão. Acho que o nosso anjo da guarda sempre nos dava uma forcinha.

O empregado do armazém se via doido com a gente. Meu pai não podia ver as nossas peripécias pois o seu escritório ficava do outro lado da rua.

Dávamos cabriolas duplas e triplas, saltávamos de uma lateral para a outra, sempre competindo para ver quem era o melhor.

O cheiro forte da amêndoa escura dominava todo o ar do armazém. Até quem passava pela calçada sentia o aroma inconfundível do cacau.

Voltávamos para casa com as roupas impregnados daquele cheiro forte que ainda hoje mora em minhas lembranças.

Ondas de pensamentos

Vânia Fagundes

Deitei a minha cabeça sobre o travesseiro e deixei os meus pensamentos fluírem. Estava disposta a deixá-los livres.

 

Resolvi que, desta vez, os observaria apenas de longe.

 

Pegaram um trem em movimento e seguiram viagem.

 

Passarem por um enorme túnel e saíram por uma janela de um dos vagões. Seguiram flutuando sobre relvas, florestas, plantações…

 

 

Avistaram o mar e ele tinha uma cor intensa, o seu azul parecia conter todos os azuis do planeta. Eles olharam para trás, como a me procurar. Escondi-me sobre uma nuvem viajante.

 

 

Vi quando pararam sobre uma enorme onda e resolveram surfar. Sorrateiros, sorriram e acenaram para mim. Juntei-me a eles.

 

A saga do acarajé

Vânia Fagundes 
Sexta-feira, começo da noite. Saio do trabalho com uma vontade retada de comer um acarajé. Quando ela bate, não combato, pois é desejo de orixá. Meu motorista, João, me espera na rua. Detalhe: o carro é dele. Damos carona a um colega que teve o carro arrombado e ainda está às voltas com o seguro e as suas chatices. No caminho o deixamos no Campo Grande, pertinho do seu ap. Chego em casa, falo pro meu marido do meu desejo e peço o carro dele emprestado (vendi o meu) para ir comprar a iguaria baiana. Preciso dar de comer ao meu corpo desejoso de dendê.
Lembro que só tenho uma nota de 2 reais na carteira e outra de 1 dólar que guardo desde sempre.
Dizem que atrai dindin. Não faço desfeita à crença nenhuma. Peço 10 reais emprestado pra ele que me dá um cheupe (bronca) por eu estar sem dinheiro mais uma vez. Rebelde que sou (sempre fui), digo-lhe que não quero mais e que vou me virar. Me pico pra Rua Barão de Loreto. No final da ladeira vendem deliciosos acarajés. Estaciono, desço do carro e, decepção, só aceitam em cash.
Volto pro carro. Preciso sacar dinheiro em algum caixa eletrônico. Parto novamente pro Largo da Graça. Estaciono na porta da garagem do banco que está trancada com corrente e cadeado. Ao lado, encostados em um carro, duas senhorinhas e um rapaz conversam. Pergunto se posso parar ali, ou se a Transalvador vai rebocar ou multar o carro. Eles me respondem que posso parar sem problemas, mas que acham que a porta do banco está fechada por conta do horário e dos assaltos.
Me aconselham a ir para o shopping mais próximo. Educadamente digo que vou tentar, e subo a escadaria do prédio. Dou com os burros n’água. Volto e conto pra eles a minha agonia para comer um acarajé. Êita orixá danado! O rapaz me oferece dinheiro. A princípio não aceito. Mas ele insiste, disse que é de boa, e eu acabo aceitando. Me dá duas notas de 2 reais e me pergunta se tá bom. Eu digo que sim, pois tenho 2 na carteira e vou catar umas moedas que o marido sempre deixa no console do carro. Aviso que preciso comprar dois, pois vou levar um para ele. O pequeno grupo é muito simpático e acabo conversando um pouco. Gente bacana, do bem e de esquerda.
O rapaz aponta para uma barraca iluminada do outro lado da praça, e diz que lá vende acarajé, que assim não terei que dar outra volta de carro novamente. As senhorinhas me dizem que o acarajé da Barão de Loreto é mais gostoso. Resolvo arriscar e experimentar o da baiana do outro lago do largo.
Vou andando. Ao chegar na barraca, pergunto o preço, mas descubro que o dinheiro que consegui só dá para comprar um. Pergunto se aceita cartão. Inês, a simpática baiana, responde que sim. Peço um com camarão e vatapá e outro só com pimenta. Volto para o carro, torcendo para ainda encontrar o grupo. Devolvo o dinheiro do professor (ele dá aula na faculdade que funciona na antiga igreja da Graça, que se encontra em reforma). Ah, esses professores, criaturas lindas. Me despeço de todos e volto feliz para casa. Sacio meu orixá, a mim e ao meu marido. Só me arrependi de uma coisa: não ter comprado acarajé para todos eles. Achei que não os encontraria mais lá.
Fiquei devendo. Um dia eu pago.

 

Férias

Vânia Fagundes

 

Dei férias ao meu juízo. Preciso cometer algumas loucuras. A vida não carece ser tão chata, tão certinha, há de se ter um pouco de insanidade para suportar tantos percalços nesse planeta de quinta (5º lugar em ordem de tamanho), cheio de água, e que está ficando quente pra cassete.

Quero soltar o meu riso, afinar o meu humor, gargalhar, explodir os meus defeitos e idiossincrasias. Vou ver se eu tô lá na esquina. Devo estar.

Não vou pisar em campo minado dos mal-humorados, mal resolvidos, mal acostumados.

Quero beber o vento, comer o Sol, surfar em nuvens, navegar no deserto, passear na lua, engolir palavras, mastigar letras e soltar minhas crônicas poéticas que andam presas na minha cabeça. Chorar um pouquinho está valendo também. Libertar-me das amarras dos papeis que nos impõem diariamente.

Darei notícias.

O ônibus, a cortina roxa e a hérnia de disco

Vania Fagundes

 

Estávamos na Estrada do Chocolate que liga o município de Uruçuca ao de Ilhéus. Vínhamos ouvindo música, observando as várias árvores caídas ao longo do acostamento e os muitos cabos de energia pendurados.

Comentávamos quantos estragos a chuva da última semana havia feito naquela região de Mata Atlântica e o quanto tinha sido bom não termos decidido viajar na terça passada.

Como tenho mania de contar, comecei a somar em voz alta a quantidade de troncos caídos. Distraída que sou, me perdi nas contas. Acho que já passam de vinte, pontuei.

Eu vinha durante toda a viagem conversando besteiras que nos faziam rir. Por instantes eu me calei, sou de falar pouco(?), foi aí que ele me perguntou: Acabou o repertório? Ele sempre me faz essa pergunta quando acontece de eu me calar um tiquinho. Respondi-lhe que estava conversando com o meu cérebro e que ele começava a escrever uma crônica futura.

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Dente Mole e Abençoada

Vânia Fagundes

 

Estrada de  Camamu. Destino Barra Grande, praia de Taipu de Fora. Sem poeira, porém com muita  lama. Chegamos ao pedágio. Coisa nova por aqui. Uma pequena fila de carros. Vidro do motorista aberto, somos saudados por um funcionário antes de chegarmos à cabine.

 

O motorista indaga:

– E aí, cara, o site não explica como funciona direito. Vocês cobram pelo carro e o motorista?! A gente pretende ir à Vila algumas vezes.

Boca bem aberta, uma cadência ao falar.

– Rapaz, é o seguinte: abençoada não paga (eu me senti a tal abençoada); criança com dente mole também não. Validade de 30 dias.

Quatro passageiros, uma abençoada e um dente mole

Apenas dois pagantes, além do carro. Dúvida Tostines: carro anda sem motorista?!

Seguimos. Paramos em um supermercado para nos abastecer. Dois saltam do carro. Dente mole e abençoada ficam. De repente o Dente mole fala.

– Vó, tô soltando muitas bufinhas. E o meu dente não tá mole.

A visita

Vania Fagundes

Deve ser perseguição. Estava eu agorinha mesmo, passeando, lépida e fagueira pelas redes sociais, deitada em meu confortável sofá, quando, de repente, não mais que de repente, um barulho me chama a atenção.

Volto o meu olhar para a janela frontal e a vejo. Ela é grande, cascuda e volumosa. Certamente parente muito próxima daquela que me visitou na semana passada. Me levanto sorrateira, pois não quero assustá-la. Abaixo por um instante o meu olhar e o fixo na sandália pousada sobre o tapete. Olho para cima novamente.

 

Atônita, percebo que ela havia sumido do meu campo de visão. Chego perto do local onde eu a tinha avistado. Sandália na mão, penso em um décimo de segundo o que devo fazer. Jogar a minha arma (a sandália) sobre a criatura? E se ela se voltar contra mim? Oh, dúvida cruel.

Resolvo fechar a janela, pois assim ela não entrará em casa. Nesse momento me vem à lembrança que o meu quarto fica próximo, e que lá também tem uma janela. E se ela entrar por lá e me atacar nos braços de Morféu?

Sigo em direção ao quarto e também fecho a janela. Faz um calor horrível. Ligo o ventilador. Meu marido desce e conto-lhe o acontecido.

Parêntese: eu preciso dizê-lo o porquê de tudo fechado. Conto tudo. Ele, vendo o meu temor, com o seu humor pra lá de sarcástico me diz: – só um míssel de Trump para matar essa sujeita ou então chame Bashar al-Assad.

Não consegui conter o riso.

 

A lista

Vânia Fagundes

 

Entro em um supermercado o maior e o único climatizado da cidade. Imediatamente me ligo na música que está tocando. Pego um carrinho, mas já não sei se canto, se danço ou se compro.

 

Resolvi fazer as três coisas ao mesmo tempo. Afinal sei quase todas as músicas da MPB dos anos 1980 que estavam rolando na playlist.

 

Não ligo para o que os outros pensem ou achem da situação inusitada, afinal dei férias ao meu juízo, lembram-se?

 

Uma moça olha para mim e ri. Digo para ela que eu estava feliz porque não estava tocando nenhuma música gospel, pois quando eu quero escutar esse estilo musical, passo na igreja (que frequento muito raramente) para escuta-la.

Não sei porque, mas está na moda por aqui em Ipiaú, cidade onde moro, muitos estabelecimentos comerciais tocarem apenas esse estilo. Credo!

Volto a minha atenção para a minha lista de compras que trago nas mãos, ela é relativamente pequena. Toda semana a minha funcionária coloca uma listinha em cima da bancada da cozinha.

Às vezes finjo não vê-la. Hoje eu fiz uma proposta para ela: “o que você acha de comermos dia sim e dia não, assim começaremos uma dieta juntas?”

Ela riu muito, mas não aceitou o que propus, obviamente.

Voltemos para o supermercado onde continuo a dançar e a cantar. Chego na balcão do açougue, confiro mais uma vez o que vem a seguir na tal lista e leio, bacon e “corno”, pelo menos foi o que eu li.

Peço ao atendente: “moço, por favor, me dê 250 gramas de bacon”. E pergunto rindo assim que recebo o que havia pedido: “aqui vende corno?”

Ele me olha com um olhar atravessado e nada responde. Insisto mais uma vez, e mostro a tal lista, e como vejo que ele não vai me responder digo:

-Deve ter bastante, mas não estão à venda, né?

Caminhos e Destinos

Vania Fagundes

 

Seus passos eram firmes. Parecia estar fugindo de algo. Dos seus cabelos escorriam gotas da chuva que desabava de um céu cinzento, pesado. Seus ombros se curvaram mais ainda. Nuvens cada vez mais escuras se formavam.

 

O sobretudo que lhe cobria o corpo frágil, não impedia que seus ossos tremessem. Um vento gelado assobiava fazendo rodopios. Fazia muito tempo que não via algo igual. Apressou o ritmo das passadas. Precisava chegar logo ao seu destino. Seus pés esmagavam as folhas que jaziam no chão.

 

A noite se fez presente antes mesmo de o dia acabar. Pensara que tudo poderia terminar diferente, quando deparou-se com a velha porta verde escuro. Parou.

 

Pareceu hesitar, embora soubesse que o caminho escolhido não permitia voltar. Então, com a não trêmula tateou o bolso esquerdo e alcançou a chave. Um cheiro de ferro velho lhe subiu às narinas.

 

 

A fechadura rangeu quando sentiu as duas voltas se completarem. Um frio percorreu-lhe a espinha. Entrou no cômodo úmido, procurou o lampião e, acendendo-o, iluminando o ambiente.

 

Então, seus olhos puderam enxergar, e viu que tinha percorrido o caminho certo.

 





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