:: ‘André Maynart’
A Morte do Marechal Francisco Solano López
André Maynart
Francisco acordou sabendo que estava morto. Há 20 dias era homem morto.
Cerro Corá era praticamente uma ilha. Cercada por mata fechada, serras, o arroio Tacuara e arroio Aquidaban, o acampamento surgiu após uma viagem heróica – ou um via crucis – de Assunção, passando pela cordilheira, por fome e pela peste, até chegar perto da fronteira com o Brasil. Foi lá que Francisco, mesmo avisado pelos indígenas da região que os cambá – negros, em guarani, ou seja, brasileiros – estavam próximos, decidiu ficar.
Francisco, o único homem gordo entre crianças soldadas, mulheres condenadas a recuar por serras e montes, velhos servindo ao Marechal sob mira de fuzil, poucos homens em idade de serviço com ossos finos à mostra, a carne de outrora comida pela fome. Pelo reino de López em Cerro Corá se dispersavam corpos nus, chamados por desespero de soldados, esquálidos a ponto de comer a terra do chão para ter algo para encher o estômago, tendo à disposição um rifle para cada cinco homens; oficiais que deviam sua presença a um misto de lealdade militar e medo dos pelotões de fuzilamento; corridas de desertores, que reencontravam a esperança da vida; canhões sacrílegos feitos de sinos de igrejas; cadáveres assassinados pela doença da cólera, outros assassinados pela psicose paranóica do Marechal.
Francisco acordou sabendo que estava morto. Francisco foi acordado pela notícia de que havia sido achado pelo exército brasileiro. Um rumor de que suas defesas no arroio Tacuara estavam sob ataque não pode ser confirmado, até que os canhões no arroio Aquidabã soassem.
Os canhões de sino disparavam desespero: ossos humanos, pedras, areia, terra eram disparados contra o exército imperial às margens do rio Aquidabã. Os postados contra o arroio Tacuara nem se deram ao trabalho de disparar, devido à falta de munição. Os soldados imperiais, frente aqueles moribundos que se chamavam de tropas e brincavam de atirar pó, não travaram combate. Já estavam mortos.
Fim do mundo em banho maria
André Maynart
Numa manhã de abril, você, leitor, acorda. São 7 horas da manhã de um dia de outono. O clima do dia anterior foi agradável: não passou dos 25 graus, com uma pancada de chuva. Tão agradável que você não ligou o ventilador. Mas hoje não é o despertador que lhe acorda, e sim o suor que encharca suas roupas, a certeza de que suas veias são tubos de vapor, um ar de sauna por toda a casa, um calor impressionante! Você pula o café e toma o que deveria ser um banho gelado, e a água sai tão quente que arde a sua pele. Depois de alguns minutos em que beira o desmaio, você coloca as roupas e vê a previsão do tempo: 50 graus! Às 7 da manhã!
Os portais de notícia anunciam: Aconteceu o aquecimento global. Depois de anos sendo anunciada, a mudança climática realmente veio e, a partir de hoje, os dias serão escaldantes, as solas dos sapatos se derreterão, se poderão fritar ovos na calçada, os animais morrerão e a extinção humana acontecerá. Alguns dizem que ouviram 7 trombetas ao acordar.
Não é um armagedom que os líderes mundiais advertem que vai ocorrer, mas a impressão que dá, ao falar em um evento devastador e irrevogável, é que tudo irá ocorrer num período curto de cataclismo. Não culpo os governos e ONGs por essa impressão, até porque é difícil não apresentar como se apresenta o Juízo Final o maior candidato ao apocalipse. Mas é um prato cheio pros conspiracionistas apontarem a incongruência entre os alertas climáticos e a presença de um mundo vivível – como pode existir um aquecimento global se não estamos nos arrastando, derretidos como gosmas, pelas ruas? Mas olhe só, ainda temos inverno! O clima ainda esfria! A Terra ainda é habitável! O verão ainda acaba!
Por mais que seja necessário transmitir a urgência da crise ambiental, essa abordagem tem uma desvantagem clara: pessoas comuns ouvem, vêem e lêem sobre um tal aquecimento global, que, em toda sua iminência e potencial catastrófico, não chega nunca. Ainda faz frio no inverno, ainda faz um calor aceitável no verão. Ninguém vê, ouve, cheira, consegue tocar num aquecimento global. E, quando elas lêem sobre as mil e uma medidas que devem ser tomadas para evitá-lo – meu Deus, eu tenho que me desfazer do meu carro? Não posso tomar banho por mais de 5 minutos? -, as respostas que elas encontram ou é a ignorância voluntária ou é o conspiracionismo.
É como a fábula do sapo na panela de água fervente: a água vai esquentando, esquentando e não se percebe. A ebulição da água, o dia do cataclisma ainda não chegou. E essa água quentinha continua agradável.
Enquanto ondas de calor vão varrendo o globo, não hesitam em mostrar que, surpreendentemente, já houve outras ondas de calor no passado. Enquanto as secas assolam o mundo, eles falam que secas não são nada novo. Enquanto tragédias acontecem, como as inundações no Paquistão – um terço do país esteve inundado! – e no sul da Bahia ano passado, e as chuvas no litoral norte de São Paulo recentemente, consideram insensíveis e politicamente motivadas qualquer menção à tal mudança climática. Como se pode falar dela em frente a essas tragédias? O que tem a ver a mudança do clima com um fenômeno climático?
O desastre sobre o qual tanto se fala já começou. Não como a vinda de um meteoro seguido de rápida extinção, mas como se o mundo estivesse sendo cozido em banho maria. Passar essa mensagem e apontar os indícios é muito mais difícil que falar em tom profético sobre o fim iminente.
Ah! E, na fábula, o sapo acaba morrendo.
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