O trabalho em mar aberto, incluindo a pesquisa científica, apresenta a contradição do horizonte sem fim com a restrição de movimentos ao ambiente da embarcação, dentre outros contrapontos. Esse aspecto é um dos fatores que piora a experiência das diferentes formas de assédio e discriminação, verdadeiras doenças dos ambientes laborais mundo afora. E, apesar dessas situações ocorrerem com pessoas de todos os gêneros e orientações sexuais, são as mulheres e as minorias que compõem a maior parte das vítimas. Uma pesquisa apresentada no artigo Harrasment and bullying aboard: impacts of gender inequality on ocean professionals, publicada na revista Marine Policy, destaca que casos de assédio moral e sexual geram efeitos de médio e longo prazo, prejudicando a saúde física, mental e mesmo as carreiras profissionais das pessoas atingidas.

No artigo, assinado por Michele Cristina Maia (UFSB), Gabriela Lamego (UFBA), Carla I. Elliff (USP), Jana M. Del Favero (Bate-Papo com Netuno), Juliana Leonel (UFSC) e Catarina Rocha Marcolin (UFSB), apresenta-se o estudo feito junto a profissionais que atuam embarcados, ligados ou não à produção de ciência, com diferentes períodos de trabalho em alto mar e de diferentes faixas etárias. A pesquisa também foi noticiada pela Agência Bori. O estudo é exploratório e foi feito mediante aplicação de um questionário com 33 perguntas, 29 do tipo fechado e quatro perguntas abertas, a pessoas que trabalham embarcadas, inicialmente dirigidas a quem trabalha em cursos de Oceanologia, Oceanografia ou outros das áreas Ambientais. O formulário foi divulgado por e-mail a coordenações de cursos daquelas áreas e via redes sociais por meio de webinários, debates online e pela plataforma Bate-papo com Netuno, dedicada à popularização de ciência. A disseminação alcançou também profissionais embarcados não envolvidos com pesquisa acadêmica. Ao todo, 260 respostas foram validadas pelos critérios definidos pelo estudo.

A investigação obteve resultados que descrevem um cenário hostil: mulheres são a maioria das pessoas afetadas por condutas de assédio moral, sexual e discriminação, tendo enviado 197 das respostas analisadas; respondentes informaram ter manifestado sintomas físicos, como tensão muscular, falta de energia, insônia e dores de cabeça, e sintomas psicológicos decorrentes dos abusos, como sensações de raiva, insegurança, impotência e falta de motivação para trabalhar. A maior parte dos casos não é reportada a instâncias superiores ou externas às instituições às quais as pessoas que responderam estavam ou estiveram vinculadas.

A professora Catarina Marcolin, que leciona e pesquisa junto ao Centro de Formação em Ciências Ambientais (CFCAM), no Campus Sosígenes Costa, em Porto Seguro, fala mais a respeito do estudo, que foi tema da dissertação de Michele no PPGCTA. Em 2022, as pesquisadoras propuseram e realizaram um webinário a partir dos resultados encontrados na pesquisa, em uma atividade conjunta com a Comissão de Ética de servidores da UFSB. “Falamos sobre como as situações de assédio em embarcações refletem o cotidiano de nossa sociedade, ainda que de forma potencializada, dada a especificidade do isolamento. Discutimos sobre a importância da Universidade para pensar estratégias educativas sobre o assunto e em como a Comissão de Ética poderia auxiliar nisso”, detalha Catarina.

 

Medidas preventivas

 

 

Além de diagnosticar o contexto, as autoras propõem medidas para incluir a dimensão preventiva nas rotinas das embarcações. Isso porque, segundo Catarina, estabelecer instâncias de combate e punição dos casos dentro das instituições e empresas não basta: “Como destacamos em nossas conclusões, são necessárias mudanças estruturais na cultura deste ambiente profissional. A aplicação apenas de ações punitivas após situações de assédio ocorrerem não é suficiente para isto. Recomendamos que sejam pensadas ações direcionadas aos indivíduos (ex: fornecer canais seguros de comunicação entre a equipe embarcada e uma equipe em terra), às organizações (ex: promover capacitações e um ambiente de trabalho seguro), aos setores relevantes (ex: enfatizar as vantagens em se ter equipes diversas em relação a gênero e raça/etnia) e pensando em políticas e ações regulatórias (ex: garantir o acesso de mulheres a profissionais de saúde)”.

Outra sugestão é o reforço das orientações contra assédio moral, sexual e atitudes discriminatórias para a equipe no momento de começar as atividades. Catarina aponta que incluir o tema no briefing às pessoas é simples de fazer e oportuno para essa ação. “O briefing é o momento antes do início do trabalho em campo ou embarcado, quando os responsáveis pela atividade precisam explicar às equipes questões básicas da operação e de segurança. Explicar que naquele embarque há uma política de zero tolerância ao assédio é uma inclusão importante nessa conversa. Além disso, recomendamos que as instituições ofereçam capacitações para as pessoas saberem identificar casos de assédio e orientar como agir nessas situações. Criar canais de denúncia para receber e investigar relatos também é essencial para proteger as vítimas”, destaca a cientista.

A visibilidade para as condutas de assédio como inaceitáveis em um ambiente embarcado é uma ação que deve influir na composição das equipes, explica a professora Catarina. Essa medida demanda decisão das instituições e das empresas pela prevenção: “Sobre mudanças na tripulação, nós entendemos que quanto mais diverso for um grupo, melhores as chances de que situações de assédio moral e sexual não aconteçam e não passem despercebidas. Assim, a inclusão de mais mulheres, bem como pessoas de outros grupos minorizados, na tripulação e nas equipes de pesquisa, especialmente em cargos de poder, é primordial. Existem algumas formas de se fazer isso, desde priorizar a contratação de mulheres até a organização de rodízios, evitando equipes compostas somente por homens. Mas logicamente, cada empresa, instituição e universidade deve pensar em suas próprias soluções. Para além disso, não é suficiente mudar a composição da tripulação se não houver um esforço para se mudar a cultura de violência, buscando a promoção de ambientes de trabalho onde as diferenças sejam respeitadas.”

Em termos de continuidade da pesquisa, a professora Catarina Marcolin afirma que os dados qualitativos devem ser analisados a fundo pela equipe. A intenção é entender melhor como as situações de assédio impactaram as vidas das pessoas que responderam o questionário. “Isso vai ser fundamental para que possamos delinear estudos de longo prazo, que são mais complexos e demandam maior tempo na coleta e análise dos dados. Além disso, a maioria das autoras fazem parte da plataforma de divulgação científica Bate-Papo com Netuno, onde publicamos textos de nossa autoria e pessoas convidadas sobre temas relacionados às ciências do mar e, particularmente, os desafios nesta carreira. Dar visibilidade para esses desafios é imperativo para mobilizarmos a comunidade em busca de soluções. Além disso, nosso grupo está finalizando a construção de um guia de combate ao assédio em embarcações, mais um dos produtos resultantes do mestrado de Michele, que esperamos que colabore para que as pessoas entendam o que é assédio, como denunciar e que contribua para a construção de medidas e protocolos relacionados à desigualdade de gênero e ao assédio em embarcações”, detalha a cientista.

 

Canais para denúncias na UFSB

A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) oferece canais distintos para o processamento desses casos. Há os canais que recebem e encaminham as denúncias, como a Ouvidoria, e os órgãos que podem realizar apurações e procedimentos disciplinares no âmbito administrativo, como a Comissão de Ética Estudantil, a Comissão de Ética de Servidores e a Comissão Permanente de Atividades Correcionais (CPAC).

É importante entender alguns pontos relacionados ao ato de denunciar uma situação de assédio, seja moral ou sexual, ou de discriminação. O primeiro é que há a proteção garantida da identidade da pessoa denunciante, com a preservação do anonimato, em especial para as denúncias encaminhadas pela plataforma Fala.Br e para a Ouvidoria da universidade. Essa proteção é devida por força legal e tem a intenção de estimular que denúncias de situações reais de assédio sejam realizadas e encaminhadas aos órgãos competentes para apuração dos fatos e, caso comprovados, responsabilização administrativa, sem prejuízo das responsabilizações civis e criminais.

Outro aspecto essencial é entender os papéis que os órgãos da UFSB desempenham nesses casos. A Ouvidoria da instituição é o órgão que recebe e responde demandas de informação e pode encaminhar denúncias de ações ilícitas, dentre elas o assédio, para os canais de apuração, que são a Comissão de Ética Estudantil, a Comissão de Ética de Servidores e a Comissão Permanente de Atividades Correcionais (CPAC). A Ouvidoria não tem poderes para investigar nem encaminhar punição no âmbito administrativo, mas sim realiza a função de ser o primeiro passo para a formalização da denúncia, sempre com a proteção da identidade da pessoa denunciante em sentido integral. Sem a formalização da denúncia não é possível iniciar uma investigação no âmbito administrativo.

Feita a denúncia, e sendo constatado que nela há indícios de materialidade que justifiquem investigação, a Ouvidoria encaminha a denúncia para a CPAC. Isso marca o final da atuação da Ouvidoria e o começo da atividade da CPAC, que passa então ao juízo de admissibilidade com base nos fatos relatados na denúncia. Como se explica aqui, os fatos relatados passam a ser de fato apurados pela CPAC, que fará primeiro um juízo de admissibilidade e, dependendo desse ato administrativo, poderá instaurar uma comissão para procedimento investigativo ou correcional. Um dos resultados eventuais pode ser a responsabilização na esfera administrativa. O PAD tem como objetivo específico elucidar a verdade dos fatos constantes da representação ou denúncia associadas, direta ou indiretamente, a exercício do cargo, sem a preocupação de incriminar ou exculpar indevidamente o servidor ou empregado.