Por Heleno Nazário

 

Em um novo artigo, cientistas buscam aprimorar o que se sabe sobre os processos de reprodução de peixes recifais com uma compilação de teorias e estudos prévios sobre a ecologia daquelas espécies. O paper intitulado “The infuence of marine protected areas on the patterns and processes in the life cycle of reef fishes” foi publicado na revista Reviews in Fish Biology and Fisheries e é assinado por André L. R. Lima (UESC), Linda M. Eggertsen (UFSM), Jessyca L. S. Teixeira (UFSB), Alexandre Schiavetti (UESC), Fabiana C. Félix?Hackradt (UFSB) e Carlos W. Hackradt (UFSB). A professora Fabiana e o professor Carlos lecionam e pesquisam no Centro de Formação em Ciências Ambientais (CFCAM) e integram a equipe do Laboratório de Ecologia Marinha (LECOMAR) da Universidade Federal do Sul da Bahia, no Campus Sosígenes Costa, em Porto Seguro.

O artigo expõe uma revisão da literatura científica sobre os fatores bióticos e abióticos que influenciam no assentamento e no recrutamento de peixes recifais, tendo em conta as áreas marinhas protegidas e seus efeitos nesses processos. O resultado encontrado na revisão bibliográfica indica que o assentamento de larvas é conformado pela interação de atributos biológicos e fatores ambientais, ambos aspectos determinantes do ciclo de vida e da estrutura populacional dos peixes recifais, e que as áreas marinhas protegidas (AMPs) contribuem principalmente com a exportação de ovos e larvas de peixes para as regiões próximas. No entanto, ainda é preciso entender melhor como a proteção ecológica oferecida pelas AMPs afeta a formação das populações de peixes, de forma direta e indireta.

Conforme os autores, a ideia é entender o papel das AMPs (na legislação brasileira, esses espaços são nomeados “unidades de conservação marinha” ou UCs) em relação aos efeitos que causam nos processos de reprodução e de trânsito das espécies recifais nos diferentes habitats. Uma AMP compreende em sua área total habitats distintos entre si, e as espécies recifais apresentam padrões de ocupação sucessiva desses habitats em seus ciclos de vida, bem como empregam diferentes estratégias reprodutivas, desde as espécies em que um adulto cuida das larvas até a estratégia de dispersão de alevinos pelas correntes marinhas.

O que, por que proteger e quais os efeitos da proteção

 

O professor Carlos Hackradt, um dos autores do artigo, explica que o artigo sugere um olhar com base na literatura especializada sobre os efeitos comprovados dessas áreas protegidas nos ciclos de reprodução dos peixes recifais: “Não é que as áreas marinhas protegidas (AMPs) sejam pouco estudadas quanto a reprodução dos peixes recifais em si; na atualidade, conhecemos bem os processos reprodutivos, o ciclo de vida, os padrões de assentamento e recrutamento. Entretanto, entender como as AMPs afetam estes processos é que continua sendo um gargalo científico. Isso porque, dentre os efeitos ecológicos conhecidos e atribuídos às AMPs, está sua “suposta” capacidade em produzir e exportar um maior número de propágulos (entendidos como larvas de peixes) de seu interior para os recifes desprotegidos, adjacentes à estes locais protegidos”.

A professora Fabiana Félix-Hackradt afirma que ainda se sabe pouco sobre os efeitos das áreas de proteção sobre os juvenis de peixes que se dispersam para dentro das AMPs, para além do potencial de exportação de ovos e larvas de peixes: “Em teoria, eles se beneficiam de um habitat de melhor qualidade, portanto maior disponibilidade de alimento; porém, também encontram maior número de predadores, o que pode contrabalancear os efeitos positivos do habitat dentro das AMPs. Essas relações ainda são pouco conhecidas, e carecem de maior esforço de pesquisa.”

collage2.jpg

Um dos fatores bióticos envolvidos, por exemplo, é a estratégia reprodutiva de cada espécie de peixe. A mais comum estratégia entre os peixes recifais é a liberação de propágulos (larvas ou ovos) no oceano, de modo que esses busquem recursos e proteção ao longo de seu desenvolvimento. Como esse ciclo de vida requer mudança de ambiente, muitos dos indivíduos jovens podem ser dispersados pelas correntes marinhas para lugares favoráveis ou desfavoráveis à sua sobrevivência, o que causa uma alta taxa de mortalidade. Para compensar esse fator negativo, diversas espécies se adaptaram para gerar uma grande quantidade de zigotos a serem fertilizados. Isso gera uma combinação de alta fertilidade dos peixes e taxas variadas de mortalidade dos propágulos conforme o ambiente, e essa conjunção de fatores pode levar a variações na reposição populacional e mesmo impactar aspectos como a dinâmica, a demografia e a estrutura da população de peixes e a composição da comunidade de peixes recifais.

Daí a questão sobre como, de fato, as AMPs influenciam na reposição populacional dos peixes recifais: uma AMP pode conter diversos habitats ou mesmo excluir da proteção um determinado ambiente que é importante. Essa pergunta requer uma evidência científica que, argumenta os autores, pede um estudo complexo. “Provar que as larvas e os juvenis de peixes que estão no entorno de uma AMP foram fruto da reprodução dos adultos dentro da AMP é um processo laborioso, que depende de técnicas de alto custo e um grande esforço amostral, pois é necessário uma amostra representativa da maior parte do estoque de peixes adultos (progenitores) dentro da AMP, para que possamos através de testes de paternidade verificar se as larvas/juvenis no entorno das AMPs foram produzidas pelos adultos de dentro da área protegida. Poucos estudos no mundo utilizaram este tipo de abordagem”, afirma a professora Fabiana.

Outro ponto destacado é que, neste contexto, se deve considerar “a capacidade dos pesquisadores em coletar um elevado número de amostras de adultos e larvas, todas as variáveis ambientais e oceanográficas de uma localidade, para prever para onde vai a prole, e considerar todo o intrínseco processo de dispersão que sofrem as larvas de peixes antes de assentarem em um recife onde farão a transição até a fase adulta”, como elenca o professor Carlos Hackradt.

 

Saber necessário para aprimorar políticas públicas

O trabalho desenvolvido no artigo resultou em uma compilação de teorias e hipóteses, existentes na atualidade, que permitiu aos autores fechar algumas lacunas no conhecimento sobre os efeitos das AMPs e a ecologia dos primeiros estágios de ciclo de vida dos peixes recifais. Essa linha de pesquisa é trabalhada no LECOMAR desde sua fundação em 2014, e é uma das principais linhas de pesquisa da professora Fabiana C. Félix-Hackradt, coordenadora do laboratório. Confira alguns dos estudos desenvolvidos pelo laboratório e divulgados em notícias na UFSB Ciência aqui aqui.

Campo5

“Este tema – os estágios iniciais do ciclo de vida de peixes marinhos – também está sendo investigado dentro do monitoramento dos efeitos do rompimento da Barragem do Fundão (Mariana-MG) sobre os padrões de assentamento e recrutamento de peixes marinhos; também se relaciona com os diversos estudos realizados com intuito de entender os efeitos ecológicos promovidos pelas AMPs que constituem uma importante ferramenta para ajudar gestores públicos nas ações de tomada de decisão quanto ao desenho, instalação e manejo de áreas de conservação marinha”, afirma o professor Carlos Hackradt. Nesse contexto, a tese de doutorado do pesquisador André, o autor principal do artigo em questão, visa descrever os padrões temporais e espaciais do assentamento e recrutamento larval na região do banco dos Abrolhos, descrevendo a constribuição do mosaico de habitats que compõem o banco (recifes em franja, chapeirões e rodolitos) para os padrões de riqueza de pós larvas na região, assim como os efeitos da proteção do Parque sobre esses processos. Um dos subprodutos desse estudo também foi a recente dissertação de mestrado defendida por Jeane Campos do Programa de Pós Graduação em Ciências e Tecnologias Ambientais da UFSB, que através de análises de otólitos – pequenas estruturas formadas por cristais de carbonato de cálcio que registram o crescimento do indivíduo e se localizam no ouvido médio dos peixes – identificou a duração média do período larval de três espécies de vermelhos (família Lutjanidae) muito importantes economicamente, assim como os padrões de crescimento dessas espécies na região do banco dos Abrolhos.

Um dos pontos da revisão feita pelos cientistas é que existem riscos em não saber ao certo como as áreas marinhas protegidas influem na reprodução, assentamento e recrutamento de novas gerações de espécimes recifais. “Os recifes de corais são fonte de alimento e renda para milhões de pessoas ao redor do mundo, porém, figuram entre os ecossistemas mais ameaçados pelas sinergias dos impactos antrópicos. Neste contexto, as AMPs representam a ferramenta mais efetiva para frear os efeitos deletérios da pesca, da perda de habitat, da poluição e das mudanças climáticas. Entretanto, se não conhecemos bem seu funcionamento essa ferramenta pode não surtir o efeito desejado ou pior, servir como um sumidouro da biodiversidade marinha”, avalia o professor Carlos.

 

 

Campo4

Uma vez que a qualidade (estrutura e complexidade) do habitat são fatores determinantes na ocorrência e distribuição das espécies de peixes, explica o pesquisador, uma AMP instalada em um local com habitat de alta qualidade permitirá que populações de peixes maiores sejam protegidas dentro das fronteiras da AMP. Essa população maior promoverá uma grande reserva de larvas, que irão então assentar e colonizar outros habitats no entorno da AMP. Essas áreas são conhecidas como fontes. “Entretanto, se o habitat protegido for de baixa qualidade e pouco diverso, a população de peixes adultos protegidos será mínima, o que faz com que a produção de larvas seja baixa ou insuficiente, fazendo com que a colonização de recifes adjacentes seja pobre ou inexistente”, exemplifica o professor Carlos. As áreas de baixa qualidade são conhecidas como sumidouros. “Portanto, entender como se dão as relações peixe-habitat e as relações de predação-competição dentro das AMPs é fundamental tanto para o sucesso da AMP, quanto para a manutenção de populações viáveis de espécies de interesse pesqueiro nos recifes adjacentes às AMPs, garantindo a segurança alimentar das comunidades locais”, conclui.

O professor Carlos destaca que a discussão feita no artigo é essencial para que gestores públicos possam pensar o desenho, a implantação e o manejo das AMPs. A professora Fabiana afirma que, por exemplo, se “uma espécie depende de um estuário para sua reprodução, mas este não é considerado no desenho de uma AMP, essa área protegida pode não alcançar os benefícios esperados para essa espécie, pois parte do seu habitat não está contemplado dentro da área. Adicionalmente, os tomadores de decisão poderão ter que decidir sobre a quantidade, o tamanho e formato dessa área marinha, e essa discussão também está contemplada na nossa revisão”, tornando esse trabalho um subsídio para tomadas de decisões e as políticas públicas no âmbito da conservação marinha e da gestão costeira.