:: ‘Livia Passos’
Liberte-se, de Livia Passos
Oscar D’Ambrosio
“Liberte-se”, de Livia Passos, obra pintada com tinta acrílica sobre tela (20 x 20 cm), distribui diversos cubos roxos no espaço. No central, na face colocada para o alto, temos uma representação humana. A obra leva a, pelo menos, duas reflexões estéticas pela escolha da figura geométrica e pelas tonalidades de cor dos sólidos apresentados.
O cubo, que traz uma conotação de prisão da imagem pintada, devido à sua solidez, é associado à eternidade. Em algumas culturas, como a muçulmana, um Kaaba (cubo), erguido no centro da Grande Mesquita na cidade de Meca, guarda a Pedra Negra, que teria sido dada a Abraão pelo Arcanjo Gabriel e é considerada uma das relíquias mais sagradas do Islã.
Pode, portanto, ser visto como símbolo de estabilidade, sabedoria, verdade e perfeição. Mas todos esses atributos também aprisionam. Para o artista, sair do “cubo”, da popular “caixa”, pode ser um caminho de libertação do corpo e da mente em busca dos próprios ideais e das muitas conexões interrompidas com o universo.
A cor roxa, por sua vez, está ligada ao mundo místico, à magia e ao mistério. É vinculada, principalmente nos rituais cristãos, a uma percepção de tristeza e de introspecção. Estão vinculados a ela conceitos de contato com o mundo espiritual, purificação do corpo e da mente e, como mostra a obra de Livia Passos, de libertação de medos e outras inquietações.
Andar com Fé, de Livia Passos
A música “Andar com Fé”, de Gilberto Gil, é o ponto de partida da obra homônima da artista visual Livia Passos. Realizada com tinta acrílica sobre uma folha de papel tamanho A4, a obra constitui uma jornada plástica em que se vê em um corpo, da cintura para baixo, de pés descalços, se deslocando da esquerda para direita.
O detalhe do rosário carregado na mão aponta para a presença da fé. O crucifixo acompanha o movimento da perna e, portanto, da própria existência. As pinceladas rápidas e ágeis na parte inferior da imagem apontam exatamente para a dinâmica do andar em quaisquer cenários, sejam mais ou menos favoráveis de acordo com a situação.
Assim como a letra diz “Oh oh/Na luz, na escuridão/Andá com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá olêlê”, a imagem transmite a necessidade de caminhar. Seja por áreas mais claras ou mais sombrias da existência, ela se faz no ato dinâmico de prosseguir e de buscar um futuro a ser construído.
Não existe um amanhã pronto a ser conquistado, mas um passo a passo que ergue aquilo que se deseja para si mesmo e para a sociedade como um todo. Nesse aspecto, a imagem de Livia Passos funciona como um estímulo ao próprio andar. Cada um carrega consigo aquilo que julga ter de melhor e de mais importante, pois a fé, seja naquilo que for, ajuda a continuar…
I am not Murakami
Oscar D’Ambrosio
O trabalho da artista visual Livia Passos intitulado “Meu mundo e nada mais” (53 x 32 cm), realizado a partir da reutilização de isopor, CDs e tampas de medicações, possibilita uma reflexão sobre a obra do artista japonês Takashi Murakami (1962), com atuação destacada principalmente na pintura e nas mídias digitais.
Ele realiza pontes entre as artes tradicional e contemporânea japonesas e a pop norte-americana. As flores com sorriso, muito presentes em suas obras, por exemplo, aludem aos estilos mangá (histórias em quadrinhos) e anime (desenho animado) japoneses. Essas referências levaram o artista a cunhar, para a sua obra, o termo “superflat”.
A denominação descreve manifestações visuais que tem como principal característica um resultado plano, próprio das artes gráficas, animações, da pop art e da arte japonesa em geral. Livia Passos, porém, em seu trabalho, se própria dos círculos e das carinhas de Murakami, representando-as com tampas de medicação.
Surge então uma manifestação visual que, por ter volume, é o contrário do superflat. Se o criador oriental alerta para a cultura consumista japonesa, levando as suas resoluções visuais para o animé, a pintura, a escultura, o desenho industrial e a moda, Livia Passos traz uma interpretação renovada com o uso de sobras do mundo industrial.
As tampas, que provém de remédios usados para combater a dor, sorriem. Se Murakami se apropria da cultura contemporânea japonesa e da influência ocidental sobre ela; a artista brasileira, como dizem os versos da música de Guilherme Arantes que intitula o seu trabalho, “Daria tudo por meu mundo/E nada mais”, faz o “superflat” ganhar o espaço tridimensional.
Oscar D’Ambrosio é Pós-Doutor e Doutor em Educação, Arte e História da Cultura, Mestre em Artes Visuais, jornalista e crítico de arte.
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