:: ‘Daniel Thame’
E a História nos esqueceu…
Rádio Iguatemi, Osasco (SP), 1980. A emissora operava em Ondas Tropicais, podia ser ouvida na Amazônia, nos rincões da América do Sul, mas em Osasco mesmo era captada em aparelhos de rádio especiais. Ou seja, era “falando para o mundo e cochichando para ninguém”.
Ainda assim, eu, Cláudio Cruz (um dos amigos que preservei mesmoe quase 30 anos depois de ter trocado São Paulo pela Bahia falecido prematuramente ) e Chico Motta (que depois se elegeria vereador), fazíamos com galhardia um programa esportivo diário.
Acho que só o operador de áudio ou algum visitante eventual que estivesse no estúdio (ou então algum índio amazônico, um cocalero boliviano, um peruano perdido lá pelos altos de Machu Pichu) ouvia aquele programa; mas era como se falássemos para Osasco inteira e para boa parte de Carapicuíba, Barueri, Jandira, Itapevi e outras cidades da Região Oeste da Grande São Paulo.
Para nós não bastava apresentar um programa esportivo na única emissora de rádio de Osasco. O pioneirismo nos convocava, atiçava.
Pois eu, Chico e Cláudio decidimos que seríamos os primeiros a transmitir ao vivo um jogo entre dois times de futebol profissional de Osasco,
“Profissional” é um pouco de exagero. Rochdale e Montenegro disputavam o equivalente à 5ª. Divisão do futebol de São Paulo e teriam certa dificuldade em vencer o Itabuna e o Colo Colo, times do Sul da Bahia cujos jogadores tinham/tem sérias dificuldades de relacionamento com uma dama chamada bola de futebol.
Dedé do Amendoim, vascaíno, petista. E eterno!
Após 46 anos percorrendo os bares de Itabuna com sua inseparável bicicleta, vendendo amendoim e ovo de codorna, Dorival Higino da Silva, também conhecido como Dedé do Amendoim ou, por motivos óbvios, Tesão, pendurou as chuteiras e os pedais em 2016.
Com oito filhos criados graças à sua labuta incansável, foi curtir a família e torcer/sofrer com o Vasco da Gama, seu time de coração, até ser acometido de uma enfermidade que o manteve recluso em casa.
Como Pelé, deixou sucessores na labuta para ganhar honestamente o suado pão de cada dia, mas não substitutos, porque Dedé era dessas figuras que mereceram o adjetivo “insubstituível”.
Dedé do Amendoim é, ao lado do Caboco Alencar, que teve que fechar o ABC da Noite por conta da pandemia e só agora promove uma reabertura gradual funcionando apenas aos sábados, é seguramente um dos personagens mais fascinantes da boemia itabunense, com histórias que dariam um livro.
Uma delas, ocorrida em meados dos anos 90, dá bem a dimensão do estilo Dedé. Vendia ele seus amendoins e seus ovos de codorna no Katiquero, vestindo com orgulho uma camisa do PT, quando um desses babacas que infelizmente poluem os bares perpetrou:
-Tira a essa camisa horrível que eu compro tudo…
Ao que Dedé respondeu na lata:
-Pois pra gente como você eu prefiro não vender nada…
E seguiu em frente, com sua bicicleta e sua dignidade.
Em 2022 Dedé foi vender seus ovos de codorna e seus amendonis lá no céu (fico aqui imaginando uma orgia angelical dados os efeitos propagados do amendoim).
Em tempo 2: O Katiquero reabriu com outro nome e outro proprietário . Ou seja, não reabriu…
Tá demitido!!!
Daniel Thame
Essa quem me contou foi o insuspeito Nestor Amazonas, que freqüentava muito a Rede Manchete, nos tempos em que a TV Cabrália era afiliada à emissora carioca.
Adolfo Bloch, já em fase outonal e vendo a televisão sugar todos os recursos do Grupo Manchete (que incluía gráfica, emissoras de rádio e uma revista de variedades/reportagens), andava pelos corredores do suntuoso prédio da tevê, implicando com Deus e o mundo.
Certo dia, ao deparar-se com o limpador de vidros com as roupas desalinhadas, não cortou conversa:
-Você está demitido, pode passar no departamento pessoal.
O rapaz foi se lamentar com seu chefe imediato, que foi logo dando um jeitinho:
-Seu Bloch anda meio estressado. Vá para outro andar e continue trabalhando…
Minutos depois, eis que seu Bloch aparece no tal “outro andar” e se repara com o mesmo rapaz limpando os vidros.
A cena que se seguiu é de puro nonsense:
-Ô meu rapaz, veja se arruma melhor suas roupas. Eu acabei de demitir um rapaz no andar de cima justamente porque ele estava mal vestido…
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PS- Aos interessados na história da ascensão e ruína do Império dos Bloch, sugiro o livro “Os Irmãos Karamabloch”, de Arnaldo Bloch, editado pela Companhia das Letras.
“Mensajero del Diablo”
Daniel Thame
1981, Radio Difusora Oeste, Osasco. Nas emissoras do interior, a Equipe de Esportes é uma espécie de faz tudo. Cobre de eleição a velório. Carnaval, então, é quase uma obrigação.
E lá estávamos nós cobrindo o Carnaval, que em São Paulo é (ou era) nos clubes e não ao ar livre, como na Bahia.
-Pastor, se nós somos mensageiros do diabo o senhor é o que, devorador de ovelhas?
Manoel Leal e o toca fitas
Daniel Thame
Essa aconteceu lá pelos idos de 1980 e poucos, nos tempos em que ainda existiam toca-fitas e que ainda dava pra amarrar cachorro com lingüiça.
O inesquecível Manoel Leal, diretor do jornal A Região (Itabuna) teve o seu toca fitas roubado, depois que o ladrão conseguiu abrir a porta do carro, que ele deixava quase sempre sem trancar.
Leal estava quase conformado com o roubo, quando ligaram da delegacia e avisaram que apreenderam um monte de toca fitas com um receptador.
Chegando no Complexo Policial, Leal se vê diante de uns 20 toca-fitas. O delegado perguntou:
-“Seu” Manoel, qual desses toca-fitas é o do senhor?
Manoel Leal, no melhor estilo Manoel Leal, respondeu:
-É um que a gente bota a fita dentro e toca musica.
Dito isto, pegou o toca fitas de melhor aparência e saiu, sem que nada mais lhe fosse perguntado.
Foi num Carnaval que passou…
A TV Cabrália ainda não tinha completado três meses quando Nestor Amazonas (a quem o Sul da Bahia, repito pela 1000000ª. vez, ainda deve o devido reconhecimento) decidiu fazer a transmissão ao vivo do Carnaval de Itabuna, na época ainda concentrado na Praça Adami..
Era um desafio e tanto, mas pra Nestor, desafio era algo do tipo “vão lá e façam essa porra”, ainda que a gente estivesse engatinhando no negócio de televisão e nem tivesse idéia do que era “essa porra”, uma transmissão ao vivo, em média oito horas por noite, quatro noites de folia.
Escalado para ancorar a transmissão, Barbosa Filho, talento intuitivo e hoje bem sucedido empresário de tevê, comandando a TV Itabuna, foi instalado numa cabine em frente ao palco.
Na base da empolgação de quem estava fascinado com a novidade de trabalhar em televisão, tocamos a transmissão numa boa, até porque carnaval não é lá o reinado da serenidade e certos exageros são permitidos e/ou nem notados.
Mas, reconheço, dois desses exageros, merecem entrar para os anais da televisão.
No primeiro, Barbosa, tomado pela empolgação diante de uma grande multidão, perpetrou:
-Cerca de 100 mil pessoas lotam o trecho de 5 quilômetros da Avenida Cinquentário entre a Praça Camacan e a Praça Adami.
Problema 1: o trecho em questão tem meros 500 metros, se tanto.
Problema 2: 100 mil pessoas, ainda que coubessem num espaço tão exíguo (se alguém usar o termo exíguo em televisão merece demissão sumária), representavam quase 70% da população de Itabuna à época.
A segunda barrigada vai na conta desse dinossauro que ora vos escreve. Mesmo vendo pelo circuito interno que a Praça Adami estava com pouca gente e não havia nenhum trio elétrico tocando, pedi pro apresentador que estava no estúdio chamar o link ao vivo e perguntar qual era a atração naquele momento.
Pego de surpresa, Barbosa só conseguiu responder:
-Como não tem banda tocando, a grande atração aqui é a equipe da TV Cabrália.
Era mesmo, mas Nestor, que só acompanhava a transmissão de sua sala, parece não ter concordado, pegou o telefone e me disse com a sutileza costumeira.
-Diz ao Barbosinha que a grande atração na praça deve ser a mãe dele…
Claro que eu não disse, até porque de atração já bastava a equipe da TV Cabrália. E o bestalhão aqui teria que incluir a própria genitora também.
(Abre parêntese: Barbosa não tinha como saber, mas fez escola: nos anos seguintes, nas caminhadas eleitorais, não era raro se divulgarem números do tipo 50 mil, 70 mil, 100 mil pessoas e fosse a campanha um pouco mais demorada, era arriscado ter mais militante do que eleitor, algo como 200 mil, 250 mil pessoas na Cinquentenário. Fecha parênteses).
A TV Cabrália é hoje um retrato amarelado na parede da memória, que as vezes retorna ao vivo em lapsos de saudade.
Que passa, como tudo é passageiro.
Menos o motorista e o cobrador…
Manuel e Daniel
-Eu soube que o senhor vai lançar um jornal e está precisando de repórteres…
-Você é de onde?
-São Paulo, cheguei há um mês aqui…
-Então começa amanhã…
-Mas o senhor não vai nem me pedir pra fazer um texto pra avaliar?
-Não precisa. Se você é de São Paulo é bom, pode vir amanhã cedo e começar a trabalhar…
-0-0-0-
Contado assim, quase 36 anos depois, parece até uma daquelas narrações inverossímeis, feitas para dourar a pílula e transformar um ato banal em algo digno de registro.
Mas foi exatamente assim que aconteceu naqueles meados de abril de 1987, num fim de tarde em que, levado por Vilma Medina (testemunha desse diálogo surreal), meu destino se cruzou com o de Manuel Leal e me fez mergulhar na aventura de uma vida que foi, durante os 13 anos em que lá passei como repórter e depois editor, trabalhar no jornal A Região.
13 anos, dez deles convivendo com Leal. O tempo permite o que em outras situações soaria como cabotinismo: o inigualável faro para a notícia e o destemor de Leal, somados a um texto cortante como uma navalha afiada e uma compulsão por grandes reportagens deste que ora vos escreve (puta que pariu, `dourar a pílula` e ´deste que ora vos escreve` são dignos de aposentadoria compulsória), foram a essência de um jornal que mais do que papel e tinta, era impresso com alma.
O arco se encontrou com a flecha.
Antes que a banda siga e o mundo gire, um adendo necessário: gente com muito mais talento para a escrita passou por A Região, mas não citarei nomes para não despertar egos adormecidos. Estou me referindo à simbiose de duas almas que o acaso (ou não) reuniu numa redação de jornal. Nisso, a união de Manuel com Daniel produziu uma rima e uma solução.
Foram 10 anos de Malhas Finas e Malhas Grossas, de reportagens inesquecíveis, manchetes de antologia, histórias (ao menos as publicáveis) que dariam um livro.
Quem senão A Região teria coragem de dar a manchete de fraude no Vestibular da Uesc, apostando num suposto gabarito jogado por baixo da porta da sede do jornal? A edição rodando, Leal me liga de madrugada:
-E se aquilo for uma falsificação?
Respondi com a única frase possível:
-Nós dois estamos fodidos.
As denuncias de fraude, com conhecimento prévio dos gabaritos por alguns privilegiados, principalmente nos cursos mais disputados, como Direito, eram recorrentes. Comprovada, mudou para sempre a história do vestibular na Uesc.
Quem senão Leal para perceber que um romance entre um fazendeiro de 70 anos e uma estudante de 13 era notícia nacional? Foi além: a história de Ferreirinha e Yolanda foi destaque até no Japão, com direito a uma impagável entrevista a Jô Soares em que Ferreirinha, orientado por Leal, repetia que sua propalada virilidade se devia ao suco de cacau. E eram tempos pré-viagra…
Jogar pra perder…
Radio Difusora Oeste, Osasco, anos 80 do século passado. O Palmeiras jogava no Pacaembu contra um time do interior (XV de Jaú, Ferroviária, algo assim, a memória é de dinossauro, mas falha).
Times em campo, lá vai esse bravo repórter entrevistar o goleiro Leão. Idolo do Palmeiras, três Copas do Mundo no currículo,
Jogador famoso sempre olhou pra rádio modesta (a nossa era briosa, mas obviamente modesta) com desdém e Leão nunca foi propriamente um exemplo de simpatia. Ainda mais diante da pergunta -vá lá, eu reconheço- idiota que perpetrei:
-Leão, o Palmeiras entrou em campo pra ganhar o jogo?
O goleiro poderia ter feito o que quase todo jogador faz: responder o óbvio, e ir pro jogo, mas Leão optou pelo estilo ´zagueiro de roça`:
-Não, a gente entrou em campo pra perder…
E, sem mais delongas, virou as costas, seguiu pro gol, enquanto meus eventuais ouvintes certamente estavam rindo deste que na época vos falava e agora vos escreve.
Ah, sim. O Palmeiras perdeu pro XV de Jaú, Ferroviária, um time desses aí.
Praga de repórter de rádio pequena também pega.
Dois olhos azuis e um destino
Daniel Thame
Quando os olhos cansados dele se cruzaram com o azul cintilante dos olhos dela, foi como se tudo em volta se resumisse na mais profunda escuridão.
Para ele, só havia aqueles olhos azuis incandescentes, no rosto de uma linda mulher de meia-idade.
Quando à luz se restabeleceu e o mundo voltou a seguir seu curso natural, ele continuava fascinado por aquela mulher.
Fatalista ao extremo e ao mesmo tempo um eterno sonhador, achou que só poderia ser a mão do destino.
Afinal, não era para estar naquela cidade. Não naquele momento.
Na terça-feira, patinou no transito infernal de São Paulo e perdeu o vôo. Remarcou a viagem para a quarta, mas chovia demais e o avião não pousou no acanhado aeroporto local.
Quando finalmente conseguir embarcar e chegar à cidade do interior, trombou com a imensidão de azul nos olhos da mulher.
Cego de paixão e num impulso atípico para alguém tímido ao extremo, aproximou-se e sem tirar os seus olhos dos olhos azuis dela, entregou o número do telefone celular.
Ela guardou o papel na bolsa e apenas sorriu.
Durante os dias em que permaneceu na cidade, esperou em vão por uma chamada telefônica que não veio.
No dia de retornar para casa, não perdeu a hora do vôo e a noite estava tão iluminada que, da janela do avião, pode contemplar um par de estrelas incrivelmente azuis, que brilhavam feito dois olhos a encará-lo.
Fechou a janela, pediu um copo de uisque para a aeromoça, sorveu num gole só, fechou os olhos e não viu nada além da escuridão.
Três horas depois, chegou a seu destino: a cidade imensa e solitária em que vivia. A poluição o impedia de ver estrelas no céu, mas nem ele fazia questão disso.
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Conto extraído do livro “A Mulher do Lobisomem”- Editora Via Litterarum
Homem Bomba
Diário de Osasco, final da década de 70. Eu e Cláudio Cruz, amigo-irmão que Deus levou prematuramente em 2017, trabalhávamos como repórteres, recém iniciados no jornalismo e escalados para funções que os veteranos sempre consideravam coisa menor: a cobertura nos bairros e as sessões de esportes e de polícia. Na verdade, eram as grandes escolas para quem estava começando e onde a gente fazia de um limão, uma limonada.
Ou de um cachorro quente um banquete, naqueles tempos difíceis, mas, hoje reconheço, felizes.
A nossa produção jornalística não deveria andar lá essas coisas (não que faltasse assunto: Osasco tinha problemas típicos de uma cidade industrial encravada na Grande São Paulo com bairros sem infraestrutura e a violência era assustadora), porque resolvemos diversificar as atividades e nos embrenhar por outras áreas.
Com a luta armada brasileira nos estertores e a Revolução Cubana distante demais, decidimos explodir latas de lixo do bairro Presidente Altino, onde ficava a sede do jornal, com aquelas bombas típicas de São João, ´tamanho GG´.
Não me perguntem o que uma coisa tem a ver com a outra, porque não tem nenhuma mesmo. É apenas pra dar um certo charme ao texto.
O plano (!) era esperar o fechamento do jornal, lá pelas onze da noite, e sair detonando as latas de lixo que encontrássemos pela frente. Como havia bombas suficientes para explodir Presidente Altino e adjacências, achei que uma bomba a mais, uma bomba a menos não faria diferença.
E então, sorrateiramente, enquanto Cláudio revisava compenetrado uma de suas matérias, coloquei uma das bombas embaixo da sua cadeira e… BUM!
Bota “BUM!” nisso. A desgraçada era muito mais potente do que a gente imaginava e ao barulho ensurdecedor seguiu-se uma fumaceira que tomou toda a redação.
Deu-se o pandemônio. O pessoal da oficina achou que a caldeira da linotipo (onde o chumbo derretido a uma temperatura mercurial servia para compor as páginas do jornal) havia explodido e saiu correndo pra rua. Vrejhi Sanazar, o dono do jornal, achou que seu patrimônio tão duramente conquistado tinha ido pelos ares e entrou feito um doido na redação.
E o advogado Achoute Sanazar, irmão do Vrejhi, que morava ao lado, quase teve um enfarto, imaginando que após invadir, destruir e ocupar a Armênia de seus ancestrais, os turcos tinham decidido eliminar também os descendentes espalhados pelo mundo.
Serenados os ânimos e esclarecidos os fatos, Vrejhi me xingou de filho da puta em português, armênio e em todos os idiomas que um dia poderia aprender, Cláudio ficou quatro dias praticamente surdo e as latas de lixo e os moradores de Presidente Altino foram poupados da nossa sanha revolucionária.
Minha carreira de Homem Bomba acabou ali.
O Estado Islâmico já sabe o que não perdeu.