Marco Lessa

 

Guanambi, cidade do interior da Bahia onde nasci, sempre será um lugar muito especial na minha vida, pois além dos amigos e da infância com tudo que uma criança tinha direito, costumo dizer que vivi os 14 anos que me forjaram. Em muitos aspectos.

 

 

E foi em Guanambi que vivi histórias divertidas e aventuras inesquecíveis nesse período tão rico da vida de todos, como as farras no bar de Precioso, um ‘cabloco da melhor qualidade’, como diziam, à base de pastéis – muitas vezes frios, mas ainda assim gostosos, farofinhas de carne frita, quando a carne era um achado, moelas cozidas, regados à tubaína, um refrigerante mais, mais barato e quase sem gás, além de alguns doces, pipocas e outras guloseimas industrializadas.

 

 

 

Pelo menos duas vezes por semana, um grupo de colegas do Colégio Padre Manuel da Nóbrega, depois das aulas, ou numas escapadas antes do final, partia para o ‘happy hour’ em Precioso.

 

 

Como éramos conhecidos através das nossas famílias, numa cidade pequena, ainda nas primeiras idas, percebendo o potencial e o consumo abaixo do desejado, já que nem todos tinham ou estavam com dinheiro, o querido proprietário nos facultou pagar as contas ao final do mês, nos apresentando o famoso ‘fiado’.

 

 

Esse empoderamento, sem consentimento e conhecimento dos pais, na fase de crescimento e de viver intensamente, não poderia terminar, digamos assim, tão bem.

 

Chegávamos, pedíamos, bebíamos, comíamos, mentíamos, ríamos, nos divertíamos, nos despedíamos e ouvíamos: tá anotado…até logo mais…vão com Deus…

 

Nos primeiros dois…três meses, se não estiver enganado, ainda juntamos mesadas e economias da cantina e pagamos ou amortizamos o passivo gastronômico.

 

 

Mas, como já diziam, menino tem arte do cão, aprendemos o fiado e o capítulo proibido: vá juntando que depois acerto.

Foram meses de pastéis e moela, tubaína e q-suco, um suco em pó, deliciosamente doce e artificial.

Próximo ao final do ano, sem pressão, o gestor do estabelecimento começou a perguntar quando poderíamos pagar as continhas, pois tinha de fechar o ano, tirando, assim, a fome, sede e o sono dos adolescentes donos do mundo. Cada um do seu jeito, foi atrás de resolver: eu fui aos cofrinhos e gavetas sem muito sucesso, precisando recorrer ao banco central: meu pai, depois de ter ouvido um ‘fale com seu pai’, de mainha.

 

– Pai, sabe Precioso, do bar perto do Nóbrega, a gente faz um lanche depois da escola, como nem sempre tá com dinheiro, ele deixou anotar…mas está cobrando e estou nem ter como pagar.

 

– E quanto é?

 

– ‘tanto’…

 

– Quanto?! o colégio inteiro comeu?!

 

– Não, é que foi um ano…ele nunca cobrou…

 

– Ok, vamos resolver…onde está a sua bicicleta?

 

– Na garagem.. (pensei: deve ser pra eu levar o dinheiro)

 

– Pronto…venda e pague o seu compromisso.

 

– Como?!…minha bicicleta, pai?!

 

– Sim, você comeu e bebeu a bicicleta…então não a tem mais.

 

Com os olhos marejando, fui ao fundo da casa arrumar e me despedir do meu único ativo naquela altura.

 

Quando cheguei no quarto escuro que a guardava, entre umas caixas, notei que tinham outras duas bicicletas bem mais antigas, menores, uma minha e outra da minha irmã, que não usava, e já foi tratada como entulho, trambolho e já deveríamos doar (sempre fizemos isso). Como não tinha ideia do valor das bicicletas, mas como uma nova pagaria a conta e ainda sobraria algum, talvez duas mais antigas também.

 

As retirei do quarto, as limpei, enchi os pneus, mandei remendar uma câmara furada, as lubrifiquei, colei uns adesivos, e, pronto, vamos ao mercado!

 

Percorri ruas e quarteirões com uma e depois com outra, oferecendo cada uma por um valor equivalente a 60% do valor total da conta, para ter uma margem de negociação ou até sobrar alguma coisa.

 

Nada. Nenhum interessado.

 

E lá voltava eu, frustrado – e preocupado, pra casa.

 

Um dia, voltando da escola, passando pelo bar, Precioso me chama e pergunta porque sumimos. Constrangido, expliquei que estávamos – eu, no meu caso, tentando vender umas bicicletas para pagar a minha parte da conta.

 

– Como assim?!, perguntou, onde estão as bicicletas?!, são grandes?

 

Respondi: em casa, são pequenas, não são novas, mas estão boas…por quê?

 

– Traga, traga…é final de ano e quero dar de presente às minhas netas (ou filhas, sobrinhas, não me recordo)…e ainda deixamos um crédito aqui pra você.

 

– Crédito? para consumir?

 

– Sim…traga hoje, se der.

 

Em uma hora, com duas viagens, levei as bicicletas. Ele ficou encantado e muito, mas muito feliz com os presentes que daria.

 

Eu?, nem se fala…não via a hora de contar para painho sobre o problema resolvido, sem perder a bicicleta e assim o fiz. Ele ficou superfeliz, mas não perdeu a chance de dar uma bela lição.

 

Depois de tudo resolvido, voltei ao bar, perguntei a ele quem faltava pagar. Como conhecia todos, sabia quem tinha um pouco mais de condições e outros que deviam estar com maior dificuldade. Pedi que, se possível, descontasse o tal crédito a favor de um dos colegas, que não consumia tanto por medo de não poder honrar e um pouco pra não ficar de fora.

 

Não sei se todos pagaram, se tudo ficou resolvido, mas no ano seguinte, ele voltou a abrir o crédito, sem a menor restrição ou cobrança, porque, assim como nós,

Precioso entendia o quanto eram preciosos aqueles momentos das nossas vidas.

 

E isso não tinha preço.

 

—–

Marco Lessa é empreendedor, publicitário e sente muita saudade de Guanambi.