Caboco Alencar

 

Ernesto Marques

Quando começou o confinamento, nas conversas com Daniel Thame, logo me preocupei: e o Caboclo? Quem é papa-jaca não tem dúvidas, mas incautos de outras paragens talvez estejam em dúvida se me refiro àquele em cujos pés, na Bahia, se recomenda que desconsolados chorem suas mazelas no centro da Praça 2 de Julho, vulgo Campo Grande.

 

E, claro, se a preocupação era com a vida, esse Caboclo não é de outro mundo. Não é monumento, como o da praça, mas é uma entidade que se pode resumir em bom baianês como uma autarquia; um patrimônio material e imaterial, também!

Sim, porque tem uma dose de ancestralidade infundida em conhecimento tradicional, personificada numa figura em carne, osso e, sobretudo, alma.

Uma combinação genuinamente baiana, dessas que compõem um personagem idiossincrático, dono de um carisma improvável, capaz de cativar séquitos de seguidos engajados e orgânicos, muito antes das redes sociais.

Muito antes de um tal de Zuckerberg criar o Face, o Caboclo já tinha criado uma rede social poderosa no Planeta Cacau. Aonde! A rede do Caboclo existe é de hooooooje, muito antes até do Orkut! E nunca houve plataforma melhor pra fazer um network em Itabuna.

Eu, forasteiro que venho lá do sertão, na primeira passagem por Itabuna, em 2004, trabalhando numa campanha eleitoral, percebi isso logo na chegada, levado pelo companheiro Rui Correia, o “senador da Bahia livre”, e jamais eleito.

Voltemos a falar da entidade, o Caboclo – a maiúscula, ou caixa alta, como dizem os jornalistas das antigas, não é simples reverência. É respeito à lei que manda grafar substantivos próprios assim. É nome de gente de carne e osso, com nome e sobrenome, também: Caboclo Alencar. Criador e mantenedor do ABC da Noite, uma verdadeira catedral de duas portas estreitas onde se reúnem infiéis de vários credos, partidos, etnias e extratos sociais.

Esse tipo ecumenismo sócio-etílico-religioso só poderia ter como endereço o Beco do Fuxico, logradouro cujo nome oficial nem itabunense conhece. Se você chegar na Avenida Cinquentenário, centro comercial de Itabuna e perguntar onde é a Travessa Adolfo Leite, dificilmente alguém saberá responder. Mas se você estiver em Ilhéus e perguntar onde fica o Beco do Fuxico, com certeza qualquer um vai lhe dizer do Beco, cuja referência certeira é o ABC da Noite, do Caboclo Alencar.

Há 60 anos, ele transformou o pequeno açougue do padrasto no bar que terminaria virando ícone da boemia grapiúna. Tudo, rigorosamente, tudo que de mais importante aconteceu no Planeta Cacau nestas últimas seis décadas passou pelo balcão do ABC. Seja pela presença frequente das lideranças da cidade, porque ser repetente da “Escolinha do ABC” é atestado de grapiunidade e credencial para muitas pretensões políticas, sociais e culturais. Seja porque todos os feitos da vida pública ou privada, maus e bons, viraram pauta dos fuxiqueiros habituais.

É seguro afirmar sem receios, inclusive, que muitas fake news tenham se propagado nesses 60 anos de ABC, a partir de fuxicos regados às incomparáveis batidas do Caboclo. Batida pra beber de joelhos, como muito bem define Daniel Thame. Mas ali, naquele enclave do éden dos biriteiros em plena terra, ajoelhar-se mesmo, só se for pra agradecer pela criação daquela batida. Não é obra de Deus, mas é do Caboclo. Este, sim, uma entidade! como já disse, é obra d’Ele. O que significa, por tabela, que aquela batida, única e incomparável em todos os tempos e em todo o globo terrestre, no mínimo tem o dedo de Deus, que – Deus me perdoe! Pode ter intercedido pelas mãos do Caboclo quando ele concebeu a recita guardada a sete chaves…

O segredo da sua criação genuína, ele não revela, e ainda inaugura uma nova corrente de pensamento: o egoísmo filosófico. “Quem ensina o que sabe, é porque não precisa”, professa o dono de uma patente que dispensa registro.

Tem lá suas razões. O ABC serve apenas as batidas e mais nada. Com a sua criação e muito trabalho, Caboclo Alencar sustentou a família e chega aos 91 anos com uma vitalidade e memória invejáveis. Só revela um detalhe para explicar a diferença de preços: a melhor batida é 50% mais cara por ser feita com vodka, em vez de cachaça. Depois da infusão, a vodka não interfere no aroma.

Durante a pandemia, ele foi cuidado e preservado como acervo vivo que é, síntese da alma itabunense. Os repetentes souberam esperar, e agora festejam a reabertura do ABC da Noite e celebram a vida do seu fundador. Os amigos vão cuidar de reabrir o templo em caráter colaborativo e em sistema de autogestão. Mas o Caboclo, que de bobo tem nada, estará feliz com as homenagens, mas de olho no movimento…

Itabuna fica mais grapiúna, se é que vocês me entendem, com o ABC da Noite reaberto. E é esse amor que itabunenes têm pela cidade que fazem o visgo que prende gente como o pauligrapiúna Daniel Thame e este forasteiro doido por uma chance de abater saudades com moderadas doses de batida de gengibre.

 

*Ernesto Marques é jornalista e radialista