Débora Spagnol

Debora SpagnolNos últimos dias, dispararam os acessos e discussões polêmicas sobre Bettina, uma jovem funcionária da empresa “Empiricus” que, em um vídeo de pouco mais de um minuto, diz que aos vinte e dois anos, acumulou rendimentos de mais de um milhão de reais a partir de investimento de R$ 1.052,00 (1)

Mas, sob a luz do direito do consumidor, é possível afirmar que tal propaganda fere a legislação consumerista ?

É importante que, antes de adentrar ao mérito da propaganda em si, se deixem claros alguns conceitos do Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90 (2), que regula as relações de comércio, em negócios realizados entre partes “desiguais”. O código consumerista, em sua essência, contém dispositivos que visam equilibrar a relação entre as partes, eis que ao privilegiar os direitos da parte hipossuficiente (consumidor) permite que os envolvidos na relação negocial possam litigar no mesmo “nível”.

De acordo com o CDC, “consumidor” é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Também “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo” (“caput” e § único do art. 2º, cumulado com os artigos 17 e 29, do Códex consumerista). Porém como consumidores também podem ser considerados os clientes em potencial: pessoas que viram determinado anúncio e talvez se interessem pelo produto. Mesmo que não tenham adquirido o produto, tais pessoas podem ser consideradas vítimas em eventual processo contra a empresa anunciante, em caso de propaganda enganosa ou falsa.

De forma resumida, o direito do consumidor tem como princípios básicos a boa-fé objetiva, a aparência, a transparência e a confiança. Na prática, portanto, isso significa que a palavra do fornecedor (na oferta, por exemplo) tem mais força do que o contrato que acompanha a venda, já que todos os elementos que constituem a oferta passam a integrar o negócio. Isso fica claro da leitura do art. 30, do CDC: “Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”. (4)

Logo a oferta tem como característica marcante a informação acerca do preço e condições dos produtos e serviços, ou seja: o valor correspondente do produto ou serviço prestado e suas formas de aquisição, pagamento, financiamento, entre outros.

A publicidade, por sua vez, é uma espécie de oferta, constituindo-se como uma forma dos fornecedores prestarem informações comerciais objetivas para a venda de seus produtos e serviços, como dados de funcionamento, produtividade, utilidade, segurança e eficácia. A vinculação da publicidade pode ser dar via anúncios, vitrines, via impressa (jornais, revistas, panfletos, folders), rádio, cinema, televisão, internet, vídeos-textos, fax, outdoors, cardápios, guias de compras, entre outros. Diferencia-se da propaganda pela ausência de informação ideológica.

Portanto, oferta e publicidade fazem parte de um grande universo denominado “marketing” que tem como finalidade satisfazer os objetivos de fornecedores e consumidores decorrentes da influência que exerce no processo de comercialização, fazendo desta maneira com que os fornecedores vendam e os consumidores comprem mercadorias e serviços. (5)

Porém, é importante ressaltar que não é qualquer oferta ou publicidade que obrigam o fornecedor ao cumprimento de seus termos, deixando de ser compulsória em duas situações: a) quando houver um erro nítido – quando um veículo que custe 50.000,00 for anunciado por 500,00, por exemplo; e b) quando a propaganda for subjetiva – por exemplo: o melhor cabeleireiro da cidade (questão subjetiva, cuja definição somente se dá pelo gosto do cliente).  Assim, para que o cumprimento da oferta ou publicidade seja obrigatório, necessariamente têm que conter de forma objetiva números, datas, metas e valores. Nesse caso, uma vez cumpridos tais requisitos objetivos, o eventual descumprimento pelo fornecedor da oferta, apresentação ou publicidade gerará ao consumidor os seguintes direitos: a) exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; b) aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; e c) rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, acrescido de perdas e danos (art. 35, do CDC).

Embora o código consumerista não tenha conceituado positivamente o instituto da “publicidade”, o fez negativamente, conceituando a partir do artigo 36 as características da publicidade mascarada, enganosa ou abusiva. Assim, anúncios que não violam o descrito nos referidos artigos são vistos como legais, por ausente proibição específica.

A “publicidade mascarada”, também identificada como clandestina ou dissimulada, é aquela que não deixa claro que se trata de publicidade, não sendo facilmente identificável pelo consumidor (art. 36, CDC). São aqueles anúncios que surgem em meio a novelas, filmes e vídeos do Youtube, por exemplo.

Já a “publicidade enganosa” (art. 37, §1º, do CDC), é aquela em que o fornecedor informa algo que não é verdadeiro ou omite algo que, se o consumidor soubesse, não compraria ou contrataria (sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, propriedade, origem, preço ou quaisquer outros dados sobre produtos ou serviços). Um dos exemplos mais surpreendentes de publicidade enganosa custou à Coca-Cola uma multa milionária: R$ 1.158.908,00 por usar termos incoerentes na descrição de um suco de “laranja caseira” cuja embalagem deixou de esclarecer que o produto é um “néctar” e não “suco”. O Ministério da Justiça entendeu que foi sonegada ao consumidor a informação de que a bebida possui aditivos de água, além do suco de fruta. (6)

A “publicidade abusiva” (art. 37, § 2º, do CDC) é assim considerada aquela que gera discriminação, provoca violência, explora o medo e a superstição do consumidor, aproveita da inocência da criança, desrespeita valores ambientais e induz a comportamentos prejudiciais à saúde e a segurança. Em resumo, é aquela que contraria os valores sociais.

O Código de D            efesa do Consumidor equipara a publicidade no ambiente virtual àquela veiculada nos canais de televisão, rádio, outdoors e outros, sendo o anunciante (e não o veículo de comunicação) o responsável civil, penal e administrativamente pelos informes publicitários que promover. Ressalta-se ainda que o provedor hospedeiro não será responsabilizado pelas informações contrárias aos dispositivos consumeristas (arts. 36 e 37 do CDC), exceto quanto à publicidade de seus próprios serviços ou produtos ou pela ocorrência de vícios no fornecimento, quando então se equiparará ao estabelecimento virtual em termos de responsabilidade.

Considerados esses conceitos consumeristas, é possível afirmar que a propaganda da Bettina acerca dos lucros por ela conquistados constitui violação ao CDC, configurando publicidade mascarada, enganosa ou abusiva ? Embora se desconheça o contrato e as condições de adesão, pode-se afirmar que, se a empresa proporcionar aos seus clientes fielmente o que é alegado no anúncio, não há violação ao Código. Porém, se as “promessas” não forem cumpridas, o consumidor que se sentir lesado (aquele que efetivamente contrata ou aquele que simplesmente vê o anúncio), poderia buscar reparação junto ao PROCON, ao Conar ou até mesmo em páginas como o “Reclame Aqui” que, em razão do grande alcance das redes sociais, tem poder para influenciar negativamente a empresa perante o mercado, além do Judiciário.

A Empiricus se define como uma empresa produtora de informação de conteúdos financeiros e ideias de investimentos, sendo conhecida pelo marketing agressivo e pelas promessas de altos ganhos em prazos curtos. Porém, promessas grandiosas geram expectativas grandiosas que, frustradas, levam a grandiosas decepções.

Em casos como o da Bettina/Empiricus, quando há dúvida sobre se o anunciante está falando a verdade sobre o produto ou serviço, há de aplicar-se o art. 38 do CDC, que determina a inversão do ônus da prova em desfavor do fornecedor. Ou seja: é o próprio anunciante quem deve demonstrar que está falando a verdade sobre o produto ou serviço anunciado, sob pena de dar validade ao outro argumento.

A lei estabelece ainda que não basta veicular a verdade: é também necessário que a prova da verdade da informação veiculada seja mantida em arquivo para eventual averiguação e checagem (art. 36, do CDC).

Neste sentido, observe-se que a proteção do CDC tem caráter dúplice: protege o consumidor, na medida em que ao mesmo deverá ser apresentada a documentação que confirme os resultados anunciados; e protege o fornecedor que, arquivando e mantendo consigo os dados técnicos que deram sustentação ao anúncio, não poderá ser acusado de prática de publicidade enganosa, porquanto terá como provar que falou a verdade.

Em suma: bastaria à Bettina comprovar de forma técnica que aplicou alguns trocados e, no prazo de três anos, obteve um retorno milionário.

Tal situação não ocorreu. Poucos dias depois da veiculação do marketing virtual, o  PROCON – SP notificou a empresa para que fossem apresentados documentos comprovando a veracidade do que foi anunciado, com a demonstração da evolução financeira da atriz/depoente, no prazo de 48 horas.

Frustrada tal demonstração, aquele órgão então enviou uma representação criminal contra a Empiricus, sob as alegações de publicidade enganosa e propaganda abusiva, em razão de fatos potencialmente lesivos ao direito do consumidor (arts. 67 e 69 do CDC, que preveem penas de detenção e multa). Além disso, multou-a administrativamente no valor de R$ 58.200,00, com base no art. 37, §1º, do CDC, sob as considerações de que a publicidade está disfarçada de depoimento espontâneo, sem apresentar os dizeres “informe publicitário”, levando o consumidor a pensar erroneamente que se trata de uma história de sucesso de quem aplicou na bolsa e não de uma propaganda. A publicidade também não contém informações necessárias sobre como houve a escalada financeira de R$ 1.520 para R$ 1 milhão em um período de três anos, como Bettina informa no vídeo, escreveu aquele órgão. (7)

Dias após Bettina gravou outro vídeo, agora sugerindo que sua empresa na verdade vende cursos visando orientar o investidor a melhor aplicar seus recursos para obter os melhores ganhos financeiros. Verdade ou ilusão, o fato é que a polêmica certamente trouxe inúmeros ganhos à atriz e à empresa, eis que em tempos digitais a viralização de vídeos quase sempre gera boa monetização. Bettina já disse que vai aproveitar a fama para virar “youtuber” e estrear uma série sobre a sua vida…

 

FONTES:

1 – Vídeo original no link: Youtube. <https://youtu.be/FTlwS0qLKP8>

2 – Íntegra da Lei nº 8.078/90 disponível no link: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>.

3 – “A Lei nº 8.078, rompe de vez com o princípio “pacta sunt servanda”. Ao reconhecer que em matéria de relação de consumo vige a regra da oferta que vincula e os contratos são elaborados unilateralmente (contratos de adesão) ou nem sequer são apresentados (verbais, comportamento socialmente típico, cláusulas gerais), estabelece que não vige a regra milenar apresentada pelo brocardo latino. Esta, claro, continua a ter validade para as relações da órbita privada, mas tem aplicação nas relações de consumo, mesmo quando for elaborada cláusula contratual negociada em separado. É verdade que neste caso ela deve prevalecer sobre as cláusulas pré-elaboradas, mas ainda assim, como se verá, recebe a influência dos demais princípios fixados na Lei 8.078”. RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. In: Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000. p.531.

4 – MIRANDA, Maria Bernadete. Blog “Estado de Direito”.  Publicidade e oferta no Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://estadodedireito.com.br/publicidade-e-oferta-no-codigo-de-defesa-do-consumidor/>. Acesso em abr. 2019.

5 – Site. Revista Época Negócios. Fabricante da Coca-Cola é multada em 1.158 milhão. <https://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2013/07/fabricante-da-coca-cola-e-multada-em-r-1158-milhao.html>. Acesso em abr. 2019.

6 – Site. Infomoney. Procon multa Empiricus em até R$ 97 milhões por propaganda de Bettina. <https://www.infomoney.com.br/negocios/grandes-empresas/noticia/8087267/procon-multa-empiricus-em-ate-r-97-milhoes-por-propaganda-de-bettina>. Acesso em abr. 2019