Naomar Almeida Filho

 naomarAmo as palavras. Respeito a palavra. A palavra compromisso, por exemplo. Uma promessa que se faz, com outros, para outros, a si mesmo. Prometemos algo com alguém para alguém: nos comprometemos, pode ser com um grupo para uma coletividade. A com-promessa implica confiança e uma palavra de honra. Desonrada fica a pessoa que não cumpre seu compromisso, não honra sua promessa. Isso vale para a vida pessoal e social, tanto quanto deveria valer para a política, principalmente a pequena política de cada dia.

A Carta de Fundação da UFSB foi escrita numa pequena pousada na estrada de Itacaré, ao norte de Ilhéus, entre 17 e 20 de setembro de 2013, por dezessete professores da UFBA, por mim convidados para compartilhar a construção da UFSB, nossa protopia de uma universidade socialmente referenciada. Foram quatro dias de foco quase total, imersão rica e produtiva, após um mês de reuniões preparatórias realizadas no escritório de Salvador. Andando cedo na praia de areia escura, no café da manhã, nos animados grupos de discussão, à noite no jantar, revendo as anotações do dia. Debates acalorados e entusiasmados, palavra a palavra.

Tínhamos consciência da importância de nossa tarefa de construir conceitos fundantes. Esgotávamos todos os argumentos, nos ouvíamos com paciência e respeito num processo tranquilo. Em nenhum momento foi necessário votar. Lembro-me especialmente da discussão para inclusão da palavra alegria, proposta por Denise Coutinho, que para alguns parecia pouco acadêmica; foram convencidos pela pressão carinhosa principalmente das mulheres, lideradas por Fátima Tavares. Os relatores trabalhavam com entusiasmo e dedicação: recordo e destaco Robson Magalhães, voluntário que não tinha cargo de gestão, atento, registrando todos os detalhes. Muita energia positiva, em suma. Poucas vezes em minha vida estive num ambiente tão fraterno, tão produtivo intelectualmente.

O primeiro Conselho Universitário da UFSB reuniu-se na sede provisória da reitoria, no Campus Jorge Amado, no final do dia 20 de setembro de 2013, uma sexta-feira que começou ensolarada. Na ampla convocação, propus uma pauta de puro simbolismo: instalação do Conselho Universitário Matriz para apreciação da Carta de Fundação da Universidade Federal do Sul da Bahia. Fomos direto da pousada, após os derradeiros retoques no texto e a checagem dos últimos detalhes do evento. Ao chegar, notamos centenas de carros estacionados dentro e fora do pátio, no acostamento da rodovia. O átrio estava lotado. As fotos do evento mostram uma multidão transbordando porta afora. Lideranças políticas, autoridades, militantes de movimentos sociais, muita gente do povo (como se diz no interior da Bahia).

O Governador Jaques Wagner presidiu a sessão, numa mesa solene composta por ele, pelo então Prefeito de Itabuna, Claudevane Leite, pela Senadora Lídice da Mata, pela Reitora Dora Leal Rosa (a UFBA era nossa instituição-tutora) e por mim. Os parlamentares eram tantos, de todos os níveis de representação legislativa, que estendemos simbolicamente a mesa solene, incluindo ainda prefeitos de praticamente toda a região grapiúna e reitores/as de todas as universidades baianas. O Governador me passou a “condução dos trabalhos” (acho bem engraçada esta expressão), fiz uma chamada nominal dos membros do Conselho Universitário Matriz e formalmente dei posse a cada um, listados nos documentos posteriormente publicados.

Coube a Sebastião Loureiro, militante da Reforma Sanitária Brasileira, ex-Presidente da Abrasco, a leitura da Carta. Professor emérito do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, meu mentor e companheiro de muitas lutas, fora convidado a colaborar com nosso projeto assumindo o primeiro decanato do Centro de Formação em Saúde. Visivelmente emocionado, com a voz embargada, mas segura e firme, Sebastião leu bem devagar o nosso curto documento-compromisso, palavra a palavra. Ainda mais elegante do que era sempre, o decano dos nossos decanos finalizou sua leitura. Nesse momento, o silêncio era profundo e denso; mesmo os cabos eleitorais, apoiadores das comitivas e curiosos que costumam ficar de pé no fundo dos eventos para tagarelar, calaram-se. Aplausos explodiram, por vários minutos, todos de pé. Fiquei arrepiado. Saí de onde estava, na ponta da mesa, e fui dar um abraço no meu professor Sebastião. O Governador Wagner veio junto e fez o mesmo. Recompusemos a mesa e submetemos uma moção de aprovação do documento por aclamação. A ata foi lida, assinada por todos os membros do Conselho, a sessão foi encerrada, as autoridades e suas comitivas se despediram, o Governador embarcou no helicóptero que aterrissara no campo ao lado da sede da Reitoria e nós, meio atônitos, no buffet que o cerimonial da governadoria havia instalado no pavilhão ainda vazio, ficamos conversando, sorrindo, alegres, empolgados, cheios de confiança, celebrando nosso primeiro e mais profundo compromisso.

A Carta de Fundação representa um compromisso de múltiplas dimensões. Primeiro, uma com-promessa pessoal mútua, de cada membro para a equipe fraterna, geradora deste projeto de Universidade. Segundo compromisso: uma com-promessa institucional, daquele coletivo inicial para o Conselho Superior matriz desta Universidade. E um terceiro compromisso: o de uma instituição social promissora que nascia, com-prometida à sociedade do território que a aconchegava. Por último, um compromisso histórico: com a transformação da educação superior brasileira, reafirmando a ideia-potência de uma universidade anisiana, de fato popular, mas sem perder a competência jamais.

Abordarei em mais detalhe a questão do compromisso social quando contar a história dos bloqueios ao Conselho Estratégico Social, dos boicotes ao Fórum Social e da sabotagem ao Congresso Geral da UFSB. O tema do compromisso histórico atravessará várias crônicas, algumas duramente críticas, outras docemente esperançosas, quando escrever sobre Diálogo, Recuperação, Luta e Esperança.

Adoro palavras. Acho até que inventei uma: mais que utopia, protopia (vejam no google). Além desse gosto, respeito muito a palavra. Respeito quem honra a palavra. Compromisso, é isso aí.