Débora Spagnol

debora 2O sexo é quase onipresente em nossas vidas: move-nos de forma  instintiva. Mesmo quem não sofre sua influência – o número de pessoas assexuais cresce a cada ano (1) – certamente reconhece que o sexo move industrias bilionárias, está ligado a muitas revoluções culturais e determina o início e o fim de muitas relações pessoais. Sexo é poder, dizia Foucault.

As práticas sexuais adquirem nuances próprias de acordo com cada cultura e etapa de desenvolvimento da sociedade e embora o assunto “sexualidade” já não desperte tantos tabus, palavras como “sexting” demonstram a alteração de desejos e práticas surgidas com a internet.

Através da internet a sociedade passou a ter maior acesso à informação, resultando em transformação do próprio mercado de consumo. No ramo de negócios ligados ao sexo, porém, nem todas as transformações foram positivas: a pornografia virtual, por exemplo, tornou famosos muitos anônimos que, na busca de “likes”, superam seus limites físicos por alguns trocados. (2)

Mais especificamente no campo pessoal, a dinâmica dos relacionamentos sexuais deve ser vista com outros olhos: do ponto de vista mais íntimo (emocionalmente falando), o sexo representa um dos atos de maior cumplicidade e fragilidade entre duas (ou mais) pessoas.

Em primeira análise, quando realizado entre pessoas maiores e capazes, o sexo não deveria ser considerado uma ameaça, ocorrendo somente mediante consentimento. Ressalte-se que a necessidade de consentimento não se limita ao gênero feminino: uma mulher pode abusar de um homem, sexualmente ou não.

Surgem então questionamentos: entre seres humanos capazes e livres para decidir, quem define a quantidade de sexo suficiente ? Como definir o tempo das relações ? Como se darão as relações ? Quando ? Onde termina a vontade livre e começa a violação ? No contexto da diversidade sexual e relacional que vivenciamos, como definir “consentimento” ? Tantas questões se tornam ainda mais complexas quando pessoas com diferentes fetiches (parafilias) se relacionam. É possível consenso em assuntos completamente dicotômicos ?

Nossa cultura ocidental fomenta a “caça” das mulheres pelos homens, transmitindo aos mesmos o poder (que acaba por se tornar obrigação) de pedir-implorar-convencer as mulheres para uma relação sexual. Em suma: o homem oferece, a mulher aceita e o homem “toma conta”.  Essa mentalidade retrógada – mas que ainda vigora em nosso país tropical-latino-machista – pode criar um clima misógino, transmitindo às mulheres a sensação de que o sexo é mais “dever” que “prazer”. Surgem então as duas faces da moeda: mulheres esperam (e as vezes cobram) as investidas sexuais como obrigação do “macho”; homens regidos por seus impulsos sexuais, completamente incapazes de negar consentimento, menos ainda de aceitar uma rejeição.

Perante a impossibilidade de consentimento, há quem cometa mesmo o ato desprezível de violar a vontade do (a) outro (a). Pipocam casos de violação sistemática de mulheres (estupros, atos libidinosos, homicídios), muitos deles tolerados pelas autoridades e pelos cidadãos.

Mas para efeitos criminais, o que é o consentimento?

Em termos legais, “consentimento” é uma espécie de acordo – expresso ou tácito – em que o titular do bem jurídico abre mão de sua tutela pelo Estado. As leis penais existem para proteger os bens jurídicos priorizados pelo legislador como a honra, a dilapidação do patrimônio, a vida … Assim, se há presunção de que o ataque ao bem jurídico de alguém foi feito sem o seu consentimento, ocorre a intervenção penal para proteger o titular do referido bem.

Embora inicialmente presumida, o agressor do direito somente será efetivamente punido se a falta de consentimento for demonstrada. E tal se dá com base em três requisitos básicos: capacidade de discernimento do ofendido, liberdade para manifestar sua vontade e conhecimento pleno dos fatos envolvidos.(3)

Capacidade de discernimento, em suma, é a possibilidade de entender o que é certo e errado, conhecer as consequências da realização de determinado ato, ter plena consciência de suas escolhas. Pessoas com desenvolvimento mental incompleto, inconscientes ou com enfermidade mental, por isso, não podem consentir. O conhecimento pleno dos fatos ocorre com a ausência de fraude e as coações físicas ou morais impedem o livre consentimento, já que impedem a vítima de manifestar livremente a sua vontade.

O consentimento possui outra característica essencial: a mutabilidade. Assim, se inicialmente a vítima concordou com uma prática sexual que envolva violência, por exemplo, mas no meio do ato resolveu não mais realizá-la, seu desejo deve ser respeitado pelo parceiro, sob pena de nulidade de consentimento e criminalização da conduta. A ausência de manifestação presume o não consentimento e não o contrário.

A relação entre consentimento e crimes sexuais, portanto, segue alguns pontos básicos: a) a incapacidade de discernimento (mesmo que momentâneo) não pode significar consentimento para uma relação sexual; b) o consentimento possui limites, portanto, se a vítima delimita o comportamento do agente e este ultrapassa essa barreira, temos o crime de estupro; c) o consentimento inicial para a relação sexual ou para uma prática violenta pode desaparecer se a vítima mudar de ideia. Assim, qualquer insistência por coação configura crime;  d) o estado de inconsciência da vítima, mesmo que esta tenha consentido anteriormente, exclui o real consentimento e qualquer ato sexual incide no tipo de estupro de vulnerável; e) uma conduta de vida incompatível com o que se espera de uma pessoa “honesta” não pressupõe consentimento, dessa maneira, se uma mulher usa roupas ousadas, gosta de danças sensualizadas ou possui uma personalidade extrovertida não significa que a mesma queira ter relações sexuais.

Portanto, relações sexuais lícitas – independentemente do número de participantes e das práticas adotadas – somente são aquelas que contenham consentimento válido e livremente manifestado, sem fraude ou coação. Se o consentimento não ocorrer e tal fato for provado, a conduta será considerada crime contra a dignidade sexual, ou mais simplesmente “crimes sexuais”, cuja tipificação está prevista no Título VI do Código Penal, com alterações da Lei 12.015/2009. (4)

Embora tantas condutas restem tipificadas, os crimes sexuais mais comuns são os definidos como “crimes contra a liberdade sexual” e “crimes sexuais contra vulnerável”. Por ora, o texto se ocupará do primeiro item, no qual estão relacionados os delitos de estupro, violação sexual mediante fraude e assédio sexual.

O crime de estupro já foi objeto de texto específico, disponível neste link: http://femininoealem.com.br/20370/sobre-o-estupro/, sendo desnecessárias maiores considerações.

Por assédio sexual (art. 216-A, do CP) se entende como o conjunto de atos ou dizeres com intenções sexuais, realizados por pessoa que se encontra em posição privilegiada em relação à vítima, e que se prevalece de sua posição hierárquica para obter vantagem sexual. O assediador pode ser homem ou mulher, não necessitando ser superior direto. Mas para configurar o crime são necessários três requisitos: a) práticas materialmente repreensíveis (insultos ou injúrias com conotação sexual, palavras humilhantes, ameaças verbais); b) práticas realizadas com o intuito de obter benefício de natureza sexual; c) elemento de autoridade – influência do poder econômico e financeiro do assediador sobre a vítima. O intuito do legislador foi proteger o trabalhador de se ver submetido e qualquer prática sexual por receio de perder o emprego ou ter sua carreira afetada de forma negativa se não ceder aos impulsos sexuais do criminoso. A pena é de detenção de um a dois anos, podendo ser aumentada em 1/3 se a vitima for menor de 18 anos.

As “cantadas” (assédio verbal) no trabalho ou fora dele, caracterizadas por elogios desagradáveis e invasivas, se vistas como formas de agressão podem ser denunciadas. Se provadas, caracterizarão  uma contravenção penal, com pena de multa.

Já a violação sexual mediante fraude (art. 215, do CP) – também conhecido como “estelionato sexual” ocorre quando se pratica conjunção carnal ou ato libidinoso com outrem mediante o uso de artificio ou engodo, restando impedida sua livre manifestação de vontade, sem violência ou grave ameaça. Assim, por exemplo, se alguém pratica sexo com o irmão gêmeo de seu namorado, achando que com ele se relacionava (inexistente o consentimento), torna-se vítima desse crime. A pena prevista é de dois a seis anos, e multa.

Diante da delicadeza do tema, considerados os desejos e manifestações pessoais, os crimes sexuais merecem especial atenção, buscando-se o necessário cuidado na investigação da conduta (por vezes condutas inadaquedas ou fora dos padrões sociais podem ser erroneamente interpretadas como crimes), a punição do real criminoso e o amparo à vítima.

Por vezes o apelo moral (que em matéria criminal deve necessariamente estar subjugado ao direito) fomentado pelo “justiçamento” criminaliza condutas meramente imorais, resultando em prisões ilegais e baseadas em interpretação ampliativa e injusta da lei.

 

REFERÊNCIAS:

1 – Assexualidade é a ideia de orientação sexual caracterizada pela indiferença à prática sexual, ou seja, o assexual é um indivíduo que não sente atração sexual, tanto pelo sexo oposto quanto pelo sexo igual. Alguns estudos indicam que a assexualidade não é uma orientação sexual, mas uma disfunção.

2 – O documentário “Pornocracy”, disponível na Netflix, demonstra a crua realidade da indústria pornográfica atual: as antigas empresas com bons diretores e atores/atrizes famosos deram lugar a uma legião de amadores quase anônimos que usa o sexo (na maioria das vezes extremamente agressivo contra as mulheres) para acobertar vários delitos.

3 – MARTINELLI, João Paulo Orsini. Consentimento nas relações sexuais. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/tag/consentimento-nas-relacoes-sexuais/. Acesso em setembro/2017.

4 – O Título VI do Código Penal divide-se em sete capítulos: Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual [estupro (art. 213); violação sexual mediante fraude (art. 215); assédio sexual (art. 216-A)]; Capítulo II – Dos crimes sexuais contra vulnerável [estupro de vulnerável (art. 217-A); corrupção de menores (art. 218); satisfação de lascívia mediante a presença de criança ou adolescente (art. 218-A); favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B)]; Capítulo III – revogado integralmente pela Lei no 11.106, de 28 de março de 2005; Capítulo IV – Disposições gerais [ação penal (art. 225); aumento de pena (art. 226)]; Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual [mediação para servir a lascívia de outrem (art. 227); favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 228); casa de prostituição (art. 229); rufianismo (art. 230); tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231); tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231-A)]; Capítulo VI – Do ultraje ao pudor público [ato obsceno (art. 233); escrito ou objeto obsceno (art. 234)]; Capítulo VII – Disposições gerais [aumento de pena (art. 234-A); segredo de justiça (art. 234-B)].

 

Débora Spagnol