Débora Spagnol

debora-2Schopenhauer citava a piedade como uma das características a equilibrar a maldade e  o egoísmo inerentes às relações humanas. A mesma piedade, segundo o filósofo, deveria também permear a relação dos homens para com os animais. Mesmo sendo avesso às convenções sociais e sem sorte com as mulheres (sua obra é famosa pelas críticas ao sexo feminino), o alemão é conhecido como o “filósofo do amor”, já que o sentimento é o tema central de sua obra; não no sentido romântico, porém, mas enquanto impulso de vida.  Intensamente insatisfeito com o modo como os homens se organizam e se afligem uns aos outros, Shopenhauer viveu uma vida peculiar e solitária, dividindo seus dias com seu cão ATMA (que significa “alma do mundo”), nutrindo, por quem nutria profundo e verdadeiro afeto.

“A piedade com os animais está tão intimamente ligada com a bondade de caráter, que se pode afirmar que quem é cruel com os animais não pode ser bom” é um dos aforismos mais famosos sobre a compaixão aos animais e foi atribuída ao filósofo. Nele, se percebe a inter-relação entre a crueldade contra os animais e contra os humanos. Estudos científicos atuais colaboram com essas constatações: no processo de abate massivo de animais, por exemplo, os trabalhadores passam por transformações psicológicas semelhantes àquelas sofridas por combatentes de guerra, executores e nazistas. A personalidade natural do trabalhador se identifica com o animal a ser abatido (que é digno de afeição e cuidado), mas outra personalidade – aquela transformada pelo trabalho no abatedouro – mata o animal, sendo  literalmente incapaz de sentir piedade para com eles. Como consequência dessas transformações psicológicas, os indivíduos que cometem crueldade contra os animais estão mais propensos ao uso de drogas, estupros, roubos e homicídio – principalmente contra mulheres e crianças. (1)

Utilizados como instrumento de diversão, crença e trabalho, inúmeros animais são abatidos e sacrificados anualmente em festas religiosas, culturais e na lide do dia a dia, no país e no exterior. Vaquejadas, touradas e farras do boi são exemplos de eventos que utilizam os animais como peças principais do espetáculo mas que, do ponto de vista moral e social, despertam grandes discussões na sociedade.

A mídia é farta em trazer vários casos de crueldade contra animais domésticos (especialmente cães e gatos), demonstrando a verdadeira contradição humana consistente em adotar e então torturar seres vivos. Manchetes movimentam  associações, ONG´s ou simples cidadãos voluntários que dedicam sua vida na proteção e mobilização dos entes públicos na criação de mecanismos destinados a proteger esses animais.

O abandono de animais de forma irresponsável e a falta de controle de natalidade cresce de forma assombrosa, tornando-se um grave problema tanto para a saúde pública quanto para o bem-estar animal. (2)

Abandonar animal na rua configura o crime de maus-tratos, puníveis pela Lei Federal nº 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Mas o crime de “maus-tratos” não se consolida somente no abandono, já que muitosanimais domésticos sofrem violência e toda a sorte de abusos, maus tratos e crueldade. Em 2011 uma enfermeira goiana tornou-se conhecida na internet pelo vazamento de um vídeo em que executa atrozmente um cãozinho “yorkshire terrier”. Mesmo diante da indignação dos internautas, que se mobilizaram na busca de uma punição coerente com sua atitude violenta, a legislação existente não resultou em punição, já que ela apenas foi condenada ao pagamento de multa no valor de 3 mil reais ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Seu registro profissional sequer foi cassado, uma vez que o Conselho Regional de Enfermagem de Goiás entendeu que a situação não afetava sua carreira profissional, autorizando a permanecer na profissão (enfermeira), que é justamente exercida por pessoas que cuidam carinhosamente de doentes.

A mobilização social para resolver os problemas de abandono e superpopulação foi a responsável pelo surgimento de leis que, embora insuficientes, visam garantir algum direito aos animais. Na década de 90, adotaram-se medidas que consistiam em duas etapas: a primeira consistia na captura e extermínio e a segunda na prevenção ao abandono.

Posteriormente, surgiu o conceito de “guarda responsável”, reconhecendo-se então que os animais possuem direitos inerentes ao ser vivo, entre eles o direito à vida. A partir daí criaram normas e estatutos jurídicos visando a sua garantia.

Entre os ordenamentos pioneiros, destacam-se a “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, criada pela UNESCO em 1978; o “Apelo de Sevilha contra a violência”, em 1986 e a “Carta da Terra”, criada na RIO+5 em 2000. Além disso, a Organização Mundial da Saúde criou várias recomendações de efeito mundial com a finalidade de promover a guarda responsável e o bem estar animal, tratando de assuntos como prioridade de programas educativos, métodos de vacinação, monitoramento epidemiológico …

No direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 traz alguns dispositivos que preveem incumbências ao Poder Público para tornar o meio ambiente sadio, como o artigo 225. (3) Já a Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) fixa as sanções administrativas por danos causados ao ambiente em geral, colocando a fauna sob sua tutela, seja ela silvestre, exótica, doméstica ou domesticada.

A lei conceitua como infração ambiental toda ação ou omissão que viole regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio-ambiente. O artigo 32 prevê especificamente a pena de abuso e maus-tratos de animais, com pena de detenção de três meses a um ano e multa. Na mesma pena, incorre quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. Se houver morte do animal, a pena é aumentada de um sexto a um terço. As infrações administrativas ambientais estão previstas no Decreto nº 6.514, que fixa no art. 29 pena de multa e detenção a quem ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

Os maus-tratos, porém, são conceituados por um decreto-lei de 1934 (24.645), que apesar de revogado serve de base para conceituar o delito. Através do texto, constitui maus-tratos golpear, ferir, abandonar e manter animais em lugares anti-higiênicos, por exemplo.

Em fase de reforma, nosso Código Penal, se aprovado, fixará como crime (e não mais contravenção penal como é hoje) o abuso ou maltrato de animais, prevendo pena de 1 a 4 anos de prisão. Se os maus tratos provocarem lesão grave permanente ou mutilação do animal, a pena aumenta de um sexto a um terço. Se houver morte do animal, pode ser aumentada da metade. Além disso, o abandono de animais passa a ser crime.

Apesar dos avanços legislativos, ainda é grave a discriminação dos animais pela indiferença humana que os enxerga como seres de insignificância jurídica. A punição, quando existente, é insuficiente a coibir a conduta violenta dos infratores. Não há também uma política forte a conscientizar a sociedade para a guarda responsável dos animais.

Para que o direito dos animais sejam finalmente reconhecidos é necessário superar a visão limitada e antropocêntrica que se tem, buscando trata-los como sujeitos de uma vida e não como um objeto ou bem imaterial.

Algumas legislações estrangeiras mais avançadas admitem como “sencientes” outros animais que não o homo sapiens. Consideram que quase todos os animais experimentam sensações como a dor ou a agonia, ou emoções, como o medo ou ansiedade, que são estados subjetivos próximos do pensamento. Com base nesse entendimento, criaram leis visando a garantia máxima contra toda e qualquer ação humana que possa violar sua integridade, criando tipos penais estabelecendo punições rigorosas.

Precisamos evoluir.

1 – Fonte: “Social Science Research Network. Disponível em papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1016401”, via Wikipédia. Acesso em novembro de 2016.

2 – Dados do ABINPET – Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação – estimam que, em novembro de 2011, haviam 58,6 milhões de cães e gatos no Brasil. De acordo com a WSPA (Sociedade Mundial de Proteção Animal), estima-se que 75¢ dos cães do mundo estejam nas ruas. Fonte: “Direitos dos animais domésticos: análise comparativa dos estatutos de proteção”. Disponível em: www2.pucpr.br/reol/index.php/direitoeconomico?dd99=pdf&dd1=14818. Acesso em novembro/2016.

3 – Segundo prevê o artigo 225, da CF: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. E no parágrafo 1º, inciso VII:  “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

3 – Dados do ABINPET – Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação – estimam que, em novembro de 2011, haviam 58,6 milhões de cães e gatos no Brasil. De acordo com a WSPA (Sociedade Mundial de Proteção Animal), estima-se que 75¢ dos cães do mundo estejam nas ruas. Fonte: “Direitos dos animais domésticos: análise comparativa dos estatutos de proteção”. Disponível em: www2.pucpr.br/reol/index.php/direitoeconomico?dd99=pdf&dd1=14818. Acesso em novembro/2016.