Debora Spagnol

debora 2Há alguns dias toma conta da mídia e redes sociais a notícia de um provável estupro cometido por mais de trinta homens contra uma adolescente carioca de 16 anos. Indignações surgiram de ambos os lados: todos desejam opinar sobre a ocorrência ou não do crime. A conduta da vítima, dos acusados e até dos delegados envolvidos nas investigações servem de argumentos para a acusação e a defesa da menina, que de provável vítima se torna ré.

Tópicos como “culta do machismo”, “não ao estupro” e outros no mesmo sentido, visando discutir a extrema violência contra a mulher externada por esse crime tomam conta de quase todos os grupos de discussão.

Ora, os avanços obtidos pela sociedade com relação ao trato igualitário entre os gêneros não impede que, até os dias de hoje, a sexualidade feminina ainda sofra formas específicas de repressão, que se sobrepõem para além da repressão sexual geral e comum.

Prova disso se traduz na nossa própria legislação penal, através da qual se pode observar de forma clara que, durante muito tempo, a visão do legislador sobre os crimes sexuais visava tão somente proteger os bens jurídicos moral e sexual que, sem seu consentimento, era atribuído às mulheres.
estuproApenas a partir de 2009, com a edição da Lei nº 12.015, nosso Código Penal trouxe importantes modificações aos crimes sexuais, começando pela nomenclatura – de ´crimes contra os costumes´, passaram a ser designados ´crimes contra a dignidade sexual´ – abrangendo assim, além da violência física, também a violência psicológica contra a mulher. A partir daí é que efetivamente o Estado passou a garantir os meios necessários à proteção da vida sexual de seus cidadãos.

Por questão lógica não cabe ao direito penal interferir em critérios subjetivos da sexualidade (como definir se tal ato sexual é certo ou não, digno ou indigno), mas tão somente reprimir condutas relacionadas à relação sexual não consentida, exploração do sexo por terceiros e contra vítimas vulneráveis. Enfim, a intenção da lei é tão somente punir a violação da liberdade individual voltada para a sexualidade.

A Código Penal define o crime de estupro no `caput´ do art. 213, consistente no fato do agente “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que ele se pratique outro ato libidinoso”.

Desse conceito se extraem quatro aspectos que são considerados essenciais para a caracterização do crime de estupro.

  • Constrangimento que decorre de violência física ou grave ameaça – A ameaça proferida pelo agente há de ser grave, intimidadora, que possa sujeitar a vítima, não bastando, portanto, a promessa de lhe causar mal.
  • A vítima pode ser de qualquer sexo – A nova lei juntou os antigos artigos que definiam estupro e atentado violento ao pudor. Assim, o crime passou a ser designado pelo que se chama “bicomum”: qualquer pessoa pode ser agente ou vitima. É possível que haja estupro cometido por homem contra mulher, mulher contra homem, homem contra homem, ou mulher contra mulher.
  • É necessária a ocorrência de conjunção carnal (introdução do pênis na vagina da mulher, com penetração completa ou incompleta, com ou sem ejaculação). Neste caso, o crime é derivado de relação exclusivamente heterossexual – vítima mulher e agente homem ou vítima homem e agente mulher.
  • Ou, ainda, que o autor obrigue a vítima a praticar ou permitir que com ela se pratique qualquer ato libidinoso (qualquer ato que vise satisfazer a libido e que não se configura propriamente como conjunção carnal, como o coito anal, prática de sexo oral, beijo lascivo e masturbação).

A maior dificuldade de se caracterizar o crime de estupro talvez seja a comprovação do que em direito penal se chama de “dolo”: vontade livre e consciente de constranger alguém mediante o uso de violência e grave ameaça a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que se pratique ato libidinoso. Os réus comumente alegam em suas defesas que a vítima concordou com o ato sexual ou libidinoso ou ainda buscam desabonar a vítima por seu comportamento social ou afetivo, resultando em sofrimento ainda maior, já que além de seu corpo resta violada sua intimidade.

A motivação do agente é irrelevante: uma vez praticada de forma violenta ou mediante ameaça a conjunção carnal ou as condutas libidinosas resulta ferida a liberdade sexual da vítima, configurando-se o crime.

Nem mesmo dentro de relações estáveis como casamento, união estável e namoros – entre ambos os sexos – a prática de relações sexuais não consensuais encontra justificativa. Já não cabe, em nossos tempos atuais, o antigo argumento chamado ”débito conjugal”,  que era muito utilizado para abonar práticas forçadas de relações: o sexo deve ser sempre um acordo de vontades.

A liberdade sexual da vítima deve se impor sobre quaisquer outros aspectos, sobrepondo-se a qualquer circunstância. Por exemplo: uma prostituta, cuja profissão é dispor de seu corpo mediante pagamento para que outro satisfaça seus desejos sexuais, deve ter garantida sua livre vontade de escolher com quem fazer sexo, praticando somente com quem desejar.

Da mesma forma, mesmo que a vítima tenha aceitado livremente acompanhar alguém a um local onde normalmente se praticam relações sexuais (como motéis), a relação sexual somente deve acontecer de forma consensual, sob pena de restar configurado o crime de estupro.

O não consentimento da vítima com relação à pratica sexual ou ato libidinoso deve ser positivo e sincero durante todo o ato, configurando-se uma reação efetiva, uma negativa firme ao sexo indesejado. Assim, se a vítima inicialmente recusou, mas depois aceitou a relação, não sendo necessária a aplicação de força ou violência pelo parceiro para que o ato se realizasse, não há estupro.

Porém, se a vítima inicialmente concordou com o sexo e depois mudou de ideia, fazendo com que o agente precisasse empregar força física ou moral para a consumação do ato, tal relação deve ser considerada não consensual, configurando-se o estupro.

O sexo com vítima menor de quatorze anos configura estupro de vulnerável, e não se exige, para a configuração do crime, o emprego de violência ou grave ameaça. São assim também chamadas as relações sexuais mantidas com pessoas portadoras de grave enfermidade ou deficiência mental (quem não tem discernimento para a prática do ato sexual ou quem, por qualquer outra causa, não tem condições de oferecer resistência ao sexo, como pessoas alcoolizadas, drogadas ou inconscientes por quaisquer motivos).  Neste caso, o bem que se busca preservar é a dignidade sexual e não a liberdade sexual, já que não se discute se houve ou não consentimento da vítima.

O estupro em todas as suas formas é considerado crime hediondo, mesmo que não resulte em morte ou graves lesões à vítima. Hediondo, em nossa legislação, é aquele crime repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso e objetivamente grave. Crimes assim considerados possuem penas mais severas e os condenados somente poderão ter direito à progressão do regime após cumpridos 2/3 da condenação.

Há estupradores de todos os sexos, idades e classes sociais.

A motivação do crime é mais do que sexual: surge da necessidade de poder, de subjugação e humilhação da vítima, geralmente alguém vulnerável e que está ao alcance.

A maioria das vítimas não denuncia os estupros, negando-se a fazer registro policial por constrangimentos e ameaçadas de quem lhe violou.

Algumas das vítimas, mais resilientes, conseguem superar o trauma e levar a vida adiante, administrando as sequelas internas. Outras, dentro de cada contexto pessoal, ficam com o restante da vida bastante comprometido, vivenciando no cotidiano e principalmente em seus relacionamentos pessoais os danos físicos e psicológicos sofridos.

Além de justiça, as vítimas merecem respeito.

Débora Spagnol é advogada , especializada em Direito Processual Civil e Direito Ambiental. Colunista dos sites “Ao Feminino e Além” e “Jusbrasil”. Pesquisadora na Comissão Especial de Estudos de Crimes Digitais.